Faço-me diletante sobre esta Lisboa escura. Lançou-se sobre a cidade uma poeira que enegrece os rostos das pessoas. As criaturas tristes vieram todas cá atracar, como barcos à deriva. Fazem-se à madrugada e às tardes inférteis. São desocupados, desempregados, rendidos ao rendimento mínimo e a procriar filhos tristes de ano para ano, são velhos com cartões azuis do mini-preço, enfiados no segundo separador da carteira, logo a seguir ao passe social, e fazem conversas aflitas nas paragens de autocarro, cercados por trouxas e sacos de plástico, enrugados pela sucessão dos dias sem esperança; arrastando-se entre pregões de cauteleiros e turistas que deslizam como mel no favo aberto dos carteiristas. E os pagadores de impostos a acotovelarem-se por cima dos horários, a espremerem-se no interior de um cartão de crédito, a fazerem monte num hipermercado aos domingos e feriados, a sumirem-se no interior de um cartão de crédito. E o cheiro forte da lixívia lançada escadas abaixo de um bairro antigo, numa tentativa desalentada de ocultar a fetidez do mijo. E, entre estes e outros odores da cidade nocturna, os artistas, engavetando a vergonha e o desalento numa ideia de projecto sem aprovação à vista, sem arrojo suficiente, sem arte que se imponha ao estigma da arte para as massas, a perderem-se na construção abstracta de outra colina, de onde se possa mirar o vazio encolhido nas multidões.
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