sábado, 14 de novembro de 2015

O bondade de me auxiliar



O Mia Couto diz que escreve para adormecer um mundo que lhe parece doente. É exatamente essa enfermidade que me tem tirado a vontade de o fazer. Tenho assistido à hecatombe da humanidade como se não fizesse parte dela. Ou com vergonha de fazer parte dela. 

Estes dias, no entanto, dei de caras com uma figura muito conhecida, aqui, no metro de Lisboa: O Bondade de me auxiliar. E à conta disso, algum valor maior do que a vergonha se levantou em mim. 

O Bondade de me auxiliar, para quem não sabe – e sabe-se que em tudo o que interessa na vida os ignorantes suplantam sempre em grande número os que conhecem os factos – é o pedinte com mais ritmo, equilíbrio e acutilância que eu já vi. Leva, numa das mãos, uma pequena caneca metálica, para onde convém que se atirem moedas, e, na outra mão, segura, em simultâneo, uma bengala e uma pequena placa de metal espalmada, a qual lança em movimentos ritmados contra a caneca, acompanhando a lamúria mais conhecida do metro de Lisboa e que, se bem me lembro, dizia apenas isto: “Agradeço a todas as damas e cavalheiros que tenham a bondade de me auxiliar”. 

Quando o vi na sexta-feira, ao início da noite, essas palavras já não lhe acompanhavam o ritmo. Estava mais magro do que nunca, os olhos se não lhe desapareceram do rosto, já não se lhe notam, devem ter caído pelas duas cavernas, onde anteriormente balançavam. A falta do som das moedas a cair na caneca empobrecera-lhe o ritmo. E eu pensei, por momentos, que lhe tinha tirado a voz. Do equilíbrio e da acutilância, nada a apontar. Carruagem percorrida aos trancos e barrancos, sem o som de pilim, finalmente se revela no seu habitual jeito insolente: “Entrego-me de homem bomba, é só os jihadistas pedirem, caralho! De homem bomba, foda-se! Eu até nem tenho nada a perder...”

E com estas palavras me escarrou na cara a fonte de todo este aluir da humanidade: As pessoas pouco ou nada têm a perder. Não perdem nada, porque nada têm. A ditadura do ter, afinal, deixa-as de mãos e alma vazias. Não adquiriram nada que lhes faça vislumbrar ou querer vislumbrar a plenitude. Sentem-se defraudadas, mas não entendem porquê. Por isso, lançam mãos ao que têm: bombas, bazucas, catanas e o catano!

Eu não. Nós não. Que nós vivemos num país, onde a cantiga é uma arma. Num país onde as palavras se aprendem tarde, mas chegam guarnecidas. Num país que eu quero viver e escrever. Sem vergonha... 

Se tiverem a bondade de me auxiliar, claro.