terça-feira, 25 de agosto de 2009

A não-inscrição de Gil



Estou convencida que José Gil, autor do ensaio: “PORTUGAL HOJE, o medo de existir”, considerado pela revista francesa Nouvel Observateur entre os 25 grandes pensadores mundiais (ex aequo com um livre-pensador do Sul do Sudão, dois caçadores recolectores do Burkina Faso e um curdo do Irão, que traduz para birmanês citações de Gil, em jeito de requiem prematuro a Ahmadinejad, e as inscreve em rochas das montanhas de onde nunca saiu e onde quase ninguém entrou); dizia eu, que esse senhor, certamente, não é minhoto, conhece pouco de romarias e nunca se inscreveu numa rusga do S. Bartolomeu. De facto, só assim compreendo que tenha criado essa teoria da “não-inscrição lusa”.

Eu não li o Ensaio todo, mas fui ao S. Bartolomeu (aliás, quem vai ao S. Bartolomeu não tem grande tempo para leituras, porque a ansiedade do momento é tal, que não deixa espaço para a concentração, durante o ano inteiro. Isto não percebe, seguramente, o Sr. Gil: O povo português é um povo com ansiedade de ser alegre! Por isso mesmo é que não é. Isto da tristeza e do fado é stresse e frustração por faltar tempo para alegria, para a folia e para a romaria, senhores filósofos! E o Sr. Gil não saberá disto porque, seguramente, sempre fugiu de romarias, de estádios de futebol cheios e de feiras com bancas a rastos; pensando acautelar-se assim numa atitude sensata para quem desata a dizer coisas sobre o povo português e a seguir as publica e arranca aplausos de todos os sectores e a alguns desvinculados tontos, como são os casos do Vasco Pulido Valente e o meu próprio).

A mim causa-me uma certa espécie que todos os pensadores e filósofos nacionais se enervem tanto com a questão da identidade lusa, se preocupem com uma homogeneidade lusa, promovam a “tugalidade” ao tentarem denegrir-lhe a imagem remexendo nos epítetos bacocos e gastos da “pequenez”, da “inércia”, da “inveja”, e agora (vá-se lá saber porquê!) uma tal de “não-inscrição”, que este senhor Gil inventou.

Eu não sei se este meu tom é irónico, sarcástico ou não-inscrito, ou se simplesmente estou verde de inveja por não ter escrito o que o senhor Gil escreveu. Mas a verdade é que este princípio da não-inscrição (não o princípio em si, que em termos emocionais a mim me parece muito são e livre, mas a forma negativa como ele é posto, exposto e dissecado) parece-me o colmatar de todo o pensamento pessimista que vai enublando os espíritos que se encabeçam como pensantes deste país. E, dá-me, que são esses que contagiam toda uma forma de sentir e estar, por cá; simplesmente porque lhes dá jeito e pouco trabalho escrever sobre os mesmos temas sebastianistas com variações medíocres e até ofensivas… (Sim, que isto da “não-inscrição” equivale mais ou menos a dizer que o “tuga” é pouco inteligente, ameaçando ser estúpido como uma porta).

E o que é que isto tudo tem a ver com o S. Bartolomeu? – Quase nada... Eu é que estive a servir finos numa barraca a todas as gentes da romaria e reparei que a alegria deles, enquanto a festa dura é sempre intensa e duradoura de ano para ano, não revelando qualquer inscrição com o ano transacto… O que me leva a pensar, que se calhar o Sr. Gil (sem saber) tem razão. Pelo menos, em relação aos foliões de Ponte da Barca, ele tem razão: aquela gente, no que toca a fazer a festa, é sempre tábua rasa, reinventa-se sempre! O que eu digo, Sr. Gil, é que era só ver a coisa por um lado mais optimista. Se calhar não lhe fazia mal ir a uma romaria minhota… acho que ainda vai a tempo e sempre não fica aí a definhar de inveja de quem se diverte e mostra cara alegre!

Sim, porque há em Portugal um rosto alegre que merece e deve ser celebrado e onde todos se podem inscrever.

Despeço-me com amizade do “meu querido mês de Agosto” e brindo ao bucolismo, à ruralidade e à romaria minhota com um copinho de verde branco de garrafeira própria.


quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Auf Wiedersehen Berlin

Numa loja de bugigangas da Hermanstrasse um ramo gigante de balões coloridos balança incertezas no ar. Na minha memória, como que por acaso, uma agulha cai no vinil e, certamente numa rotação errada, oiço isto: “99 Luftballons”. Fiz o resto da avenida acompanhada por essa melodia resgatada aos anos 80, cruzei para a Emser e entrei em casa, sempre com esse ritmo por companhia. Esse verso único, ainda cá está a meter-se entre as palavras que quero escrever que nada têm a ver com ar, com balões ou com a Nena, que como anunciava uma revista no quiosque da esquina, já é avó.

“99 Luftballons” – que poderei fazer com este número? – Penso. – O que se faz com 99 balões, senão lançá-los ao ar e formular desejos? A ideia não será original e acho que era mais ou menos isto que dizia a canção.

Mas agora que estou aqui apetece-me voltar à loja e lançar todos os balões ao ar e pensar em cada momento, em cada rosto, em cada gesto, em cada abraço, em cada beijo, em cada palavra aprendida com prazer, em cada garrafa de vinho partilhada com amigos, em cada rua percorrida, em cada parque, em cada bar, em cada sonho partilhado com amigos, em cada grupo de punks de Friedrichein ou de junkies de Kottbusser Tor, em cada manifestação de rua, em cada pessoa-garrafa, em cada vizinho que me cumprimenta com sorrisos, em todos os que não o fazem, em cada telefonema em polaco de um dos vizinhos da frente, em cada gato do lar de gatos do rés-do-chão do meu prédio e na sua felicidade por desconhecerem a ASAE, em cada parede da minha casa e nas janelas sem cortinas e sem persianas, em cada janela sem persianas e sem cortinas dos vizinhos da frente, em cada espectáculo partilhado com amigos, em cada texto que escrevi, em cada livro que li, em cada filme que vi, em cada museu que visitei, em cada viagem que fiz, em cada falafel que comi no libanês, em cada casa de kebab que me enjoa, o que equivale a dizer em cada esquina de Neuköln (que nunca me enjoou), em cada restaurante de Sushi, (principalmente aquele pequenino da Oranianstrasse, em que o japonês escorraça os clientes, quando tem mais do que quatro), em cada Currywurts que me deixou maldisposta, em cada cerveja de trigo, em cada momento de desespero com a burocracia alemã, em alemão; em cada alemão que conheci, em cada turco (principalmente o filho do padeiro, que insiste em contar-me as brincadeiras que faz com as irmãs), em cada persa, em cada israelita, em cada palestiniano e também naquele rapaz de Moçambique; em cada pastor alemão que vi na rua e também no cão d’água do Obama que vi nas notícias da televisão do metro, em todas as notícias parolas e nas outras, que mais valia esquecer; em cada nome de rua que esqueci, em cada momento em que deambulei e me perdi na cidade, em cada frase que ouvi dia a pós dia repetida: “Zurück bleiben bitte”, como num enigma que agora decifro. Enfim, apetece-me pensar em cada aprendizagem que esta cidade me deu, só para ver, se tudo somado, dá 99 ou nove vezes 99, mas com a certeza que essa soma é mais, muito mais do que um número registado num livro de balanços e que tudo o que desejo é não perder a memória desta cidade.

99 Luftballons que me mantenham a levitar e, principalmente, me ajudem a respirar de novo em Berlim. Talvez volte de balão 99 vezes, ou talvez perca a conta das visitas. Certo ou quase certo é que sempre que vir um balão, pensarei em ti, Berlim.