terça-feira, 23 de março de 2010

Pão pão, cage cage

Tudo parece fácil quando tu existes e sais do quarto antes de mim, a exalar cheiros do sono, sem fazer barulho. Ou quando a água cai sobre o teu corpo e eu imagino que escorro com ela. Tudo parece simples quando chegas e és só tu, embora eu me some a ti. Tudo é engenhosamente claro quando sorris e eu percebo que dicionário algum explica melhor o que é o sorriso.
Nada consegue ser tão repetitivo e (ainda assim) tão inesperado como partir e chegar. Nada é tão perfeito como esses dois momentos que nos põem tristes e alegres sem mais nada. É geralmente aí que sou feliz: na imperfeição de um abraço que tão depressa se forma como se desfaz. O tempo desse abraço é o meu tempo. Se mo tiram deixo de fazer sentido. Ando aqui a coleccionar esses momentos, que muitos julgarão como pontes para o que é maior. Eu julgo que nada há de mais verdadeiro do que os incorruptíveis momentos dos abraços. Partir e chegar, atamarelada num abraço, é o que me dá continuidade.
Um dia, tu deixas de partir e de chegar e o que é fácil, simples e claro, toma progressivamente o seu sentido inverso. A partir desse dia, tu existes, mas és uma multidão a sair do nosso quarto, da nossa cama, sem contar com a multidão que eu também lá arrumei entre as dobras dos lençóis e alinhei nas primeiras rugas do rosto. E quando sinto a água cair do chuveiro, só sinto a água a cair do chuveiro. Não espero que venhas beijar-me na despedida. Já nem vislumbro a despedida. E quando a chave entra na fechadura da porta de entrada, só sinto a chave a entrar na fechadura da porta da entrada: uma, duas voltas e (acto contínuo) passos arrastados que, de tão pesados, parecem vazios.
Não sei quando deixo de te sentir partir e chegar. Sei que a palavra sorriso se esconde num léxico indecifrável. Ninguém sabe quando acontece, porque entretanto, fomo-nos deixando estar, como pássaros dentro de gaiolas, a ver a luz por entre traves. E deixamo-nos estar porque, assim, na fímbria de um quotidiano inventado por outros, tudo nos parece impossível, doloroso, mas lógico, como na expressão sombriamente dúbia : pão pão, queijo queijo. Escolha muito infeliz de pares: às vezes, pão não há e queijo também não. Às vezes, nas relações, nem se chega nem se parte e tudo me soa mais ou menos a isto: bird bird, cage cage.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Um homem de respeito

Ao arranque de uma lâmpada económica, o espelho até lhe poderia mentir, no instante em que o rosto branco de espuma da barba espera imóvel pelo varrer prudente de uma lâmina.

Todas as manhãs sentia que se desfazia do rosto.

Todas as manhãs escalpelizava a alma. Ou pelo menos, nas manhãs em que o exercício do sorriso o diferenciava dos outros animais. De resto, o que lhe ficava a pender no dia, desse momento, era um movimento e um som: a gillette azul a dar uma exacta cambalhota e a cair no fundo de um saco de plástico branco.

Ao sair de casa, beija a esposa, a quem diariamente vai subtraindo elegância. Às vezes, leva o filho mais novo à escola e fica ao portão à espera que ele entre. Por estes dias acompanha-o mais, porque lhe fica em caminho, mas sobretudo, porque isso lhe dá um certo charme, e a educadora do filho já lhe sorri por cima do ombro. É bonita. E há dois dias lançou-lhe uma dança de dedos com a mão direita. Depois desse gesto, há vários momentos do seu dia que não têm som nenhum. Só o silêncio rasgado por essa imagem de dedos que balançam.

Num misto de repulsa e inveja ouve os relatos dos seus colegas _ homens a sério_ que se fazem respeitar pelas iniciais do nome gravado nos botões dos punhos das camisas, pela leitura de uma crónica de bola e pelo número divulgado de amantes. Por muito que tente, não consegue alinhar numa ordem de importância cada um desses atributos, que fazem desses homens, homens de respeito.

A ele ninguém o respeita. Ninguém o olha com admiração. É tímido, não gosta de futebol e nunca fala das suas aventuras amorosas. É porque não as tem, mas isso ninguém sabe. Embora não o admita, gosta de os ouvir enumerar os seus relatos mais fantasistas. Sempre considerou suspeita esta demora no exercício colectivo de urinol. E enquanto as vozes deles se entusiasmam num chorrilho de disparates e as braguilhas se lhes fingem pequenas, ele lava as mãos e, ao secá-las, o barulho insuportável do secador abafa-lhes, por instantes, o deboche. Olha-se ao espelho uma última vez. O som da gillette volta a cair num saco branco, os dedos da professora do filho a prometerem-lhe que um dia, não muito distante, será um homem de respeito, como aqueles, e será nesse santuário de bobos que se afirmará.

Antes de sair ainda olha para trás: continuam todos alinhados em frente aos respectivos urinóis, abanam-se grotescamente, como cães à chuva. Depois, olha para o espelho. Da sua figura destacam-se as mãos: estão limpas. Ao passá-las pelo rosto sentiu que se refazia. O telefone tocou. No pequeno ecrã, a palavra amor piscava num fundo verde. Atendeu sem dizer palavra. A voz do outro lado anunciou simplesmente: estamos em casa. E tudo nesta frase lhe pareceu claro e digno de respeito.

Nessa noite, abriu a gaveta onde guardava os botões de punho, que nunca usou, e lançou-os ao lixo. Deste gesto não ouviu qualquer som. Não terá dele qualquer eco.