terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Natal



Mesa ao centro 
Com família à volta
Da mesa
Com comida ao centro
E família à volta
Da mesa
Sem comida ao centro 
Ou família à volta
Da mesa
vazia.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Encomendas


O "Zapping sobre as madrugadas idênticas" 
Pode chegar à sua caixa postal 
Ainda antes do Natal!
Ponha aqui coordenadas autênticas:

ecomendaszapping@gmail.com

Depois, é só esperar... e tal:)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Zapping nas bocas do mundo



“Na nota hoje divulgada, é dado a saber que o júri ratificou a proposta de um dos membros no sentido de ser recomendado para publicação o romance “Zapping sobre as madrugadas idênticas”, de Maria Eugénia da Silva Brito, pela originalidade do tema, estilo narrativo intenso e bem construído, mantendo o leitor numa expectativa constante até à resolução da trama ficcional.”



O parágrafo acima é retirado de uma nota (pelos vistos), retirada de outra nota divulgada pelos organizadores de um prémio literário (Prémio Nacional Dias de Melo, das lajes do pico, nos Açores). Não ganhei o prémio, mas o livro foi “recomendado para publicação”, o que é de enorme lisonja (e de alguma estranheza também, pois parece-me isto inédito: menções honrosas são normais, agora ratificar opiniões de um dos jurados, parece-me estranho). Seja como for, o reconhecimento sobre aquilo que fazemos sabe sempre bem. E sobre esse assunto não tenho mais nada a dizer.


Há, no entanto, coisas que devo dizer sobretudo àqueles que visitam este blogue espontaneamente, o que quer dizer, que de facto apreciam o meu trabalho e querem segui-lo. Não vos quero agradecer porque estas coisas não se agradecem, mas quero talvez pedir-vos desculpa por fazer cu doce (enorme expressão brasileira, que significa exatamente isso: Pôr açúcar no cu com segundas intenções). 


Temendo que isto fique demasiado críptico, passo a explicar: Orgulho-me de dizer que o “zapping sobre as madrugadas idênticas” é muito mais do que um livro, um projeto pioneiro e único em todo o país, desde o reconhecimento pelo júri do Prémio Literário Cidade de Almada- 2010 (Isto do que é público). Todos os que aqui vêm sabem que a edição é minha, mas não saberão muito bem porquê. Eu digo-vos: porque as editoras não estão interessadas em fazer o seu trabalho convenientemente. E com todo o respeito que tenho por aqueles que tentam, quero que isso fique bem vincado: foi por verificar a manifesta incompetência das editoras deste país, que me decidi por uma edição de autor. Sei que isto pode parecer uma generalização parva, mas vamos lá a raciocinar em conjunto: O meu livro ganhou um prémio, é notícia num jornal de dimensões nacionais – O Expresso (mas creio que só na edição online), há outras referências na imprensa, a coisa é falada. E de todo o universo de gente que trabalha em edições de livros, eu recebo duas propostas: uma seguramente desonesta, a outra sem grande convicção. Espero mais um pouco. Não acontece nada. Porquê? – Porque estes senhores, ao invés de fazerem o seu trabalho e procurarem o que mais lhes deve interessar (livros e escritores), ficam à espera que seja o autor-coitadinho a suplicar – Não o fiz, claro! – O meu trabalho é escrever, não é publicar.


Agora, reparem nisto: o “zapping” é distribuído apenas em livrarias independentes, deixando de fora, intencionalmente, os grandes grupos livreiros. (parece que recentemente Pilar del Rio tomou também parte de uma iniciativa de incentivo às livrarias independentes - bem haja!); Por essas livrarias andamos, eu, o livro e a minha “agente” e amiga Maria do Sameiro (que sem qualquer currículo na área fez mais trabalho do que faz qualquer distribuidor instalado no mercado – declarações dos próprios livreiros), em conversas e apresentações sempre muito agradáveis. Algumas iniciativas originais são tomadas, de entre as quais refiro a oferta de livros a passageiros da CP- iniciativa que a própria CP parece ter copiado (em boa hora, e sem ressentimentos!).


O envio do Zapping para outro prémio, com características idênticas, é parte desse trabalho de distribuição (não estava à espera de ganhar outro prémio, mas foi uma boa hipótese de provocar a sua leitura). Estes prémios de menor dimensão monetária têm, por vezes, gente de maior valor literário do que os grandes prémios cheios dos vícios das editoras e de alguma imprensa (normalmente a que se dedica precisamente aos livros e que tem ligações aos grandes grupos editoriais, por isso, fala só do que lhe convém). A “panela” das centenas de milhares de euros é muito pequena e em termos de aprendizagem sobre a escrita vale o que vale (é sempre incalculável, claro), mas não vale seguramente pela novidade ou inovação.

As minhas desculpas são para as pessoas que não terão oportunidade de ler esta nota, nem nenhumas das que por aqui vou pondo. Se houvesse outra imprensa em Portugal, talvez já tivessem ouvido falar do “Zapping sobre as madrugadas idênticas”, talvez até já o tivessem lido e ninguém aqui teria que se lamentar ou agradecer.

Não quero com isto dizer que escrevi o maior livro de todos os tempos e que ele foi injustiçado. Quero com isto dizer que, provavelmente, os melhores livros que se escrevem no mundo não foram nem nunca serão revelados ao mundo. E eu tenho muita pena!



Parabéns ao João Negreiros pelo primeiro romance e pelo prémio agora recebido! 





segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Portugal ausente




Olha, Portugal, fiz de ti um poema
Enquanto esperava que chegasses
Que para afrontar estes medos
Inventasses um esquema
Despontaram-me longas unhas nos dedos
E com elas esventrei palavras
Guardei-te numa espécie de poema.

Escolhi a pátria triste do meu pai
Para te guardar o P
Escolhi uma oração solene
Que te redimisse d’ ódio
Para te guardar o O
Escolhi rios, riachos e um rumor que corre
Para te guardar o R
Escolhi o pão que se divide com um amigo
E um imenso campo de trigo
Para te guardar o T
Escolhi o arrojo de Ulisses
Para te guardar o U
E a passarola de Gusmão
Para te guardar o G
E a alma de um poeta
Para te guardar o A
Ah, e escolhi o teu fim, Portugal
Para te guardar o L.

Escolhi sonhos e memórias do mar
Mães e pais e filhos para amar
A linha do horizonte
E a travessia de uma ponte.

Queria ver-te navegar mais livre
Nesse mar que te arrasta
E te devolve mais forte
Que te garante a vida
Desfigura e afronta a morte.

Olha, Portugal, não é por mal:
Vai-te! Quero ver-te partir!
Proscrito refarás este mapa
Onde uma memória de domínio
Há muito te mata.
É chão prescrito,
É fonte que secou!
E um mundo novo te escapa.

Não deixes, Portugal!
Tira-te dessa incómoda carraça
Não vais lá de caravela, de bravura insana
Fé inabalável ou apelo à raça.
Vai-te Portugal, faz-te à vida!
À vidinha, sim senhor!
Leva a ciência, a tecnologia, a mão-de-obra barata
Os artistas e os doutores de gravata,
Uma rima básica, o que for!
Mas não te fiques, Portugal
Que esta terra que sonhaste não ata nem desata:
Mata. E alimenta-te de rancores.
Já sabes que é assim:
Uma pátria constrói-se de suor, lágrimas
E o raio da saudade que te parta!
Não te fiques, Portugal,
Eu quero ver-te partir feito em lágrimas
Eu quero ver-te chegar
Quero que regresses desse infinito mar, Portugal.

Trago-te guardado dentro das palavras
Que (ainda) recordo como nossas.
Vem, Portugal, vem logo que possas,
Não é pela saudade
(Que disso não há quem nos cure)
É que tenho as unhas grandes
Dava-me jeito uma manicure.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

As pessoas mais feias do mundo.



Eu não gosto de políticos e desengane-se quem julga concordar comigo por não lhes sobrarem motivos válidos para essa antipatia. Estou convencida que o maior motivo para o meu desagrado com os políticos se prende com a aparência. Redunda este raciocínio na seguinte intolerância: eu não gosto de políticos porque eles são feios. É só isto. Não se pense que há mais do que isto. Vivemos numa sociedade em que pensar acima disto é retroceder à espécie de Neandertal (ou assim), e eu sou, em larga medida, sapiens-sapiens.
Para que não julguem que isto é um devaneio, resultante do austero período que atravessamos, apresento-lhes a título de exemplo, um caso da minha intimidade: Havia na minha adolescência um rapaz muito giro a quem uma vez, à custa de tanto provocar proximidade, ouvi o seguinte: “um dia, serei Presidente da Câmara”. Na minha cabeça, esse rapaz passou de bestial a besta antes mesmo de pronunciar a palavra “Câmara”. Os seus olhos, onde antes distinguia apenas a cor paixão, ficaram subitamente enturvados de mate; o porte, que sempre me parecera distinto e elegante, começou um prolongado entorpecimento a partir das mãos, e onde antes se formavam sorrisos, apareceram, desde essa fatídica sentença, dentes amarelos, encavalitados uns nos outros, pendendo abusivamente por cima da mandíbula. O príncipe da minha adolescência metamorfoseara-se no mais abominável dos sapos com dentes, apenas e só por ter demonstrado uma certa inclinação para cargos políticos.
Portanto, fica provada a longevidade da minha repulsa por sujeitos políticos e fica também a descoberto uma grande mancha na minha conduta: o preconceito de imagem. Felizmente, ninguém me pode acusar de segregar minorias, porque esta espécie tem vindo a propagar-se em tão larga escala, que suportá-los é algo que fica muito acima das nossas possibilidades.
 Longe vão os tempos em que o presidente da junta era o merceeiro, que ganhava eleições distribuindo folhas de bacalhau pelo Natal, e a isso ninguém chamava suborno nem caridade, chamava-se “jeitinho”. Agora, na mesma quadra, passam pelas casas à cata de grelos e ainda pedem marmita, dizendo que é um esforço necessário para um bem comum. É comum, sim senhora, é cada vez mais comum e esse é o maior problema: a coisa normalizou-se e nós já não nos importamos: damos os grelos, a marmita e ainda lhes guardamos roupa velha para o dia seguinte.
Se ao menos isto se passasse numa terra de políticos bonitos… Mas os políticos são, de longe, as pessoas mais feias do mundo. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Verbum


Nos primeiros anos de vida, as palavras acontecem como uma coleção de troféus, não nossa, mas dos adultos que nos rodeiam. Não sei qual foi a minha primeira palavra e acho que os meus pais também não. Quando se é o quarto filho de um casal, julgo que o encanto que isso possa ter é coisa de somenos. Se conseguissem imaginar a importância que isto viria a ter para mim, talvez os meus pais tivessem guardado, nas paredes da nossa casa, os meus primeiros sarrabiscos de insultos à ortografia e torpes acrescentos ao português.
Mas não: bastava ser primavera para que as paredes  espelhos estilhaçados da minha rebeldia   fossem limpas, substituindo-se a luminosidade do interior de cada palavra escrita, por umas valentes pinceladas de tinta. Foi assim que se apagou o meu nome das primeiras vezes: a tinta apagava-se com tinta e o fenómeno parecia conter apenas o tamanho das mãos que compunham e ocultavam palavras.
O processo de anulação constante do trabalho realizado pelas minhas mãos duraria até ao ponto preciso em que entendi que as palavras nascem do silêncio das mãos. As mãos silenciosas são lanternas acesas, que se deslocam à frente do pensamento e que conduzem aos sonhos a que damos voz. A palavra “palavra” não fala: diz como pulsa o centro do mundo – o nosso interior – e gravitando sobre si própria acumula os milhões de tentáculos que lhe garantem a locomoção: o significado, quer dizer, o significar, porque palavra é verbo e saber que o é. É saber agir e saber estar.
Nas paredes de uma casa ou de um muro manchado com impropérios, ou de um cartaz levantado ao alto em dia de revolução, ou dos lábios cerrados de um mudo, ou da ignorância sobre as minhas primeiras palavras, até que a boca se canse e as mãos falem, há de figurar uma e outra vez, a sombra nítida do meu nome apagado: rebelião. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Insónia


 As terras, dizia-me a minha mãe há dias, não andam boas. Ela não fala disso, porque tem vergonha, mas sabe que foram os adubos químicos que há duas ou três décadas começaram a acelerar produções dos outros, que lhe estragaram a terra. A terra precisa de mãos e de suor, a minha mãe sempre soube disso, por muito que a tenham tentado convencer do contrário, e nunca se iludiu: as mãos sempre lhe foram de serventia e o suor que diariamente lhe descia pelo rosto e lhe chegava aos lábios nunca lhe foi doce. Durante toda a minha vida tive a romântica sensação de que os meus pais dormiam pouco, mas sonhavam. Agora dormem seguramente mais, mas sonham menos. Só que isso, penso, faz parte dos ofícios do tempo.
Felizmente para eles e infelizmente para Portugal, os meus pais não são nem um estereótipo nem um arquétipo do povo. O povo nem dorme nem sonha. Anda tão tenso quanto teso, sofre de insónias. Indigna-se torpemente, quando lhe mandam, em frente a um ecrã plano ou em praças cheias; nas redes sociais, vomita vilipêndios contra o neoliberalismo, o socialismo, o comunismo, o fascismo e ismo, ismos, ismos, que se confundem a todos e lhe esmifram o pão e a paciência, mas que lhe dão a ilusão da participação. E numa busca pela clarividência embriagam-se em definições que se hão de fazer em pó, sem que ninguém se dê conta e sem que ninguém seja ouvido. Os fazedores dos ismos (os mesmos que há muito apenas ouvem a voz estatística do povo) lançaram sobre nós adubos químicos: puseram-nos a produzir oratória abundante, formaram livres-pensadores (poucos), eruditos (menos ainda), e batalhões vorazes de verborreicos estrategas que, de tanto se levarem a sério, se convenceram que a vida é um produto dos seus próprios pensamentos e (pior que isso!) fazem o povo acreditar que são eles os paladinos da razão.
Todos sem exceção nos esquecemos disto, que a minha mãe na sua sabedoria telúrica tão bem organiza: a vida é mãos e terra nas mãos com suor ao lado. Para acordar é preciso dormir descansado. E para sonhar.
O povo português nem dorme nem sonha. E eu caminho enredada neste pesadelo, sem verdadeiramente dormir, sem verdadeiramente acordar. Mas a acreditar que sonhar não é apenas o produto de um impercetível transtorno disfémico.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Mais do mesmo


 Não me cabe na cabeça que haja alguém satisfeito com o que se está a passar no meu país. Estávamos todos cá, antes do dia 15, mas nesse dia, todos vimos que despertar quem não está é possível. Muitos estivemos na rua em protesto, uns de cabeça mais perdida do que outros. Conheço gente que nunca esteve tão bem financeiramente e que estava lá também. Já não é verdade que só reclamamos quando nos vão ao bolso, já há consciência política e solidariedade e uma vontade de nação. A coisa cresce, finalmente, Abril chegou à vida adulta.
Não é preciso ser-se um génio para tirar conclusões sobre a insatisfação geral. Os génios fazem falta, isso sim, para nos tirar da situação em que nos encontramos. Levou-nos muito tempo para percebermos o que representa a representatividade política e não sabemos em quem confiar, mas sabemos já bastante bem em quem não se pode confiar.
 A vontade com que muita gente se julga salvar numa economia paralela não é apenas o exercício do “salve-se quem puder” é, isso sim, a prova de um profundo descrédito nas instituições. Ou alguém acredita que são apenas os bandidos, os facínoras, os políticos corruptos, os criminosos e os Xicos espertos que a fomentam? Pois digo-vos que há nisto muita gente honesta e que já todos os conceitos valem o seu oposto. E que tudo isto é desolador.
 Num cenário (pouco provável em meu torpe entender) de dissolução de parlamento e convocação de eleições antecipadas, será este Abril adulto digno da sua maturidade? Será capaz de, finalmente, saber fazer-se representar com dignidade e coerência? Ou irá continuar a lançar votos “seguros”, escondendo-se cobardemente atrás da esgotadíssima alternância democrática?
Há muito que deixei de acreditar. Há muito que o meu voto é branco. Se me voltarem a chamar, eu vou, mas, como nas últimas vezes, vou sem fé. Talvez só mais consciente do que aqueles que escolhem mais do mesmo.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Razões de sobra para isto dos livros


A propósito do último post e essencialmente para aqueles que estão a pensar: “ah, grande coisa, vender 600 livros num ano!”, tenho várias coisas a dizer:
Primeiro: é uma grande proeza, sim senhor, distribuir livros de uma escritora que nunca ninguém viu nem em revistas, nem em jornais, muito menos em televisões (sobre isto não me alongarei, pois tomo os escassos leitores deste espaço como pessoas razoavelmente inteligentes e bem informados ao ponto de perceberem o funcionamento do mercado livreiro neste país).
Segundo: Distribuir um livro sem editor e sem distribuidor é obra de gente movida a muita paciência, persistência, um travo de loucura e, essencialmente, amor - Aqui há de tudo isso em doses generosas.
Terceiro: Não há público leitor em Portugal. Há umas pessoas que leem uns livros e, essas pessoas e esses livros repetem-se muito. Nenhum dos supostos amantes de literatura deste país se atreve por uma leitura não referenciada.
Quarto: o meu livro só seria referenciado se eu fizesse aquelas coisas inauditas que as pessoas fazem para que os críticos gostem de os criticar. É sabido que eu não faço coisas inauditas. A única coisa que faço, em relação a isso dos livros, é escrever, com o intuito de, de vez em quando, escrever excepcionalmente bem. Mais do que isso é fastidioso.
Quinto: Se uma editora (daquelas a sério, como ainda há quem julgue existir em Portugal) tivesse editado o meu livro, seguramente, há mais de um ano que ele estaria fora de circulação e grande parte da edição poderia muito bem ser dada a abate.
Sexto: as livrarias portuguesas sofrem imenso com a falta de hábitos de leitura neste país. Eu tentei perceber como sobrevivem, tentei até ser solidária com elas ao dar-lhes o exclusivo desta edição (as grandes superfícies comerciais foram propositadamente excluídas da distribuição). Muitas não souberam apreciar o gesto, outras ganharam novo alento com a ideia, outras desapareceram a meio do processo. Eu, no fundo, não fiz mais do que saber de tudo isto por dentro.
Sétimo: os escritores portugueses não se importam de ser mal tratados. Não se importam com a miséria de direitos de autor que ganham ou não ganham, ou perdem, ou até nem sabem muito bem o que isso significa. Ganham dinheiro através da escrita, mas não necessariamente com aquilo que escrevem. E aceitam isso. E acham isso razoável. Acham aceitável autoproclamarem-se escritores porque fazem aparições em sítios, como aquelas pessoas dos reality shows. Seja como for, os escritores portugueses sofrem imenso com a falta de hábitos de leitura neste país, tal como os livreiros; quanto mais não seja porque amam os livros e porque é triste ver os que amamos votados à solidão e ao abandono.
Oitavo: “livros são papéis pintados com tinta”, quem não percebe a ironia contida neste verso, pode voltar a ler tudo de novo.

terça-feira, 8 de maio de 2012

intimidades de um anfíbio


 As pessoas que escrevem, escrevem sempre. Até quando lhes parece que o sangue não lhes corre nas veias, agem e sentem como répteis, a temperatura do corpo adapta-se à temperatura ambiente. O escritor foi buscar isso aos répteis: adapta-se às circunstâncias, porque sabe que o valor das palavras que conhece hoje é diferente amanhã, e a sua busca de entendimento do mundo está nas palavras. É preciso procurá-las.
A morte não é a pior coisa que nos acontece. As pessoas sabem muito bem que é assim.
Há nove meses, andava eu já mais esquecida do medo, por causa da besta negra que invadira a Luísa, e perco o Luís, aquele que me dava a maior garantia de que a morte estava longe e não vinha já. Vejo pessoas a escreverem logo a seguir ou durante as suas perdas e isso impressiona-me. Eu também o fiz, mas em certa medida obriguei-me a fazê-lo. A minha querida irmã, com outro sangue a correr-lhe nas veias e a uma nova fauna intersticial, também se pôs logo a trabalhar, pôs-se a andar na rua sem sentir as pernas e elas a levarem-na por caminhos e a passarem pelas pessoas, sem quebrarem, sem a deixarem cair. Os amigos do Luís soltaram as palavras que tinham dentro e isso também os foi mantendo de pé. Mostraram-se todos, sem saberem que o vemos nos rostos deles sempre que os encontramos e que isso nos dói, e que isso nos lava um pouco por dentro.
 Ando há nove meses furiosa com tudo e também com as palavras (bastante mais com as palavras que, afinal, não chegam para apaziguar coisa nenhuma). E ontem, no dia da mãe, quando me pus a ler um texto, que ando a escrever há já mais tempo que a evidência desta coisa muito feia que nos aconteceu, gostei tão pouco, que pensei: E se fosse mãe, poderia não gostar do meu filho? – Não sei. Talvez nunca saiba. Amar é uma opção e há muitas mães que optam por não amar. São, aliás, mais as que optam por não amar do que as que admitem não gostar. Talvez a vida fosse melhor se muitas mães admitissem não gostar dos seus filhos e seguissem, ainda assim, na sua opção de os amar.
Nove meses é normalmente um tempo bom, traz-nos memórias fecundas e doces. Nasceu uma criança (outras também, mas eu quero referir-me a esta), a Paula ficou grávida (outras mulheres engravidaram, mas eu quero referir-me a esta), o tempo continuou a gerar vida (e continuou a gerar morte, mas eu quero referir-me à vida). Ainda assim, estes nove meses foram um tempo mau.
Não gostei do texto ontem, provavelmente hoje já gosto mais e, até decidir que está acabado, irei continuar a promover o seu crescimento, conforme considerar justo. Livros não são filhos! Podemos acabá-los ou não, podemos ignorá-los e esquecê-los, rasgá-los ou apagá-los e até mostrá-los. Mas livros não são filhos, não senhor! – As pessoas sabem muito bem que é assim.
A morte não é a pior coisa que nos acontece – as pessoas sabem muito bem que é assim. – Mas a mim é. Quem escreve, escreve sempre. – Mas eu não. Eu ainda não aprendi nada com os répteis, e muito pouco com os peixes. 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Zurück bleiben, bitte!

Guardo esta frase, como uma das mais marcantes da língua alemã. Devo tê-la ouvido uma vez por cada dia que passei em Berlim. E isto não equivale a dizer que a tenha ouvido todos os dias, pois foram muitos os dias de temperaturas impraticáveis para a minha descida à rua, e muitos outros em que saía a pé ou de bicicleta, por isso, não usava o metro e não ouvia aquelas palavras.

A frase significa, algo como : “afaste-se, por favor” e é dita quando as portas do comboio se abrem para a entrada e saída de pessoas. (Coisas de cidades grandes). Sem perceber muito bem porquê, sempre me causou uma certa angústia. Agora, à distância, penso que percebo esse sentimento e que a minha primeira perceção desse enunciado era, afinal, a mais correta. “Zurück” significa “atrás” e “bleiben” ,“permanecer”. Quando ouvi aquela frase pela primeira vez, o conhecimento tacanho que tenho da língua alemã, pôs-se a fazer uma tradução literal da frase: “permaneça atrás, por favor”.

Nos últimos dias, esta frase e o irreprimível frémito de medo que me causava voltou a ecoar na minha cabeça. Sempre que Angela Merkel se refere ou se dirige aos gregos, é isto que oiço: “Zurück bleiben, bitte”, quando Vítor Gaspar se ajoelhou em frente ao seu homólogo alemão, Wolfgang Schaube, o que eu o ouvi dizer foi “zurück bleiben, bitte”, quando o “milagre económico alemão” é destacado do resto dos países europeus, através das demagógicas taxas de desemprego (que escondem, por exemplo, sete milhões de trabalhadores precários), o que eu oiço é isto: “Zurück bleiben, bitte”, quando vou ao multibanco, o bonequinho verde não sorri e diz “Zurück bleiben, bitte”, quando saio à rua e penso fazer qualquer coisa mais do que sair à rua, as ruas gritam: “zurück bleiben, bitte”...

De tanto ouvir isto, a minha mente vai ficando acamada nesse espaço remoto, onde já quase nada se alcança. E tenho medo, muito medo de permanecer atrás, como me tem sido indicado.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Moro onde começa a cidade

Moro onde começa a cidade

Vejo-a de cima

Debruçada na varanda.

Uma chusma de pregões dispersa

Sobe pelas fissuras das casas

Entra-me pelas narinas

Em aromas de salsa e coentros

Que sobram aos cestos cheios

Alinhados num chão pétreo.

Os infantes ciganos retesam-se nas tendas

Acima do frio e da bruma

Soltam aplausos às próprias palavras

chispadas pelo olhar agudo de um pai.

Acordo onde começa a cidade

Das igrejas manda-se o tempo passar

Sonoramente

A cada quarto de hora

Um galo canta até que seja meio-dia.

Piropos escorrem brutamente

Das bocas dos feirantes

Moças redondas escorregam torpemente.

Uma mãe passa por outra mãe

Perante o meu olhar que desperta

Sopesam-se

Tudo é som, cheiro e alimento.


Moro onde começa a cidade

Entre as mães

E a vida.