sexta-feira, 31 de julho de 2009

Lady Something and Mister Nothing

Que não, disse-lhe, que não conhecia o artista, que nunca o tinha visto antes. E que sim, que estava a gostar. E estava. Estava a gostar bastante, até.
- Mas os outros são conhecidos? – Insistia ele, enquanto escorregava um pouco mais entre a barra do bar e o meu ombro, e, o suor que o vestia inventava que nessa noite era Verão em Berlim. E eu, que não, que não sabia, que não tinha a certeza.
- E falam todos em Inglês? – Arriscou, ainda, já com os lábios a roçarem-me aquela parte sensível que protege o ouvido, mas que não o bloqueia. E eu, que não, que também havia alemães.
- Não percebe inglês? – Perguntei, só para mudar de posição e evitar-lhe o braço que escorregava pelo balcão e me ensopava as costas.
- Pouco! – Retorquiu com um entusiasmo assustador.
O mestre-de-cerimónias, que era meu conhecido, entrou para apresentar a performer seguinte, falou em Inglês, com sotaque da Bronx e eu ia reagindo ao que ele dizia com risos e palmas. A nova artista entrou e eu não lhe percebi o nome.
- E esta quem é?
- Hmmm… Lady Something. – Respondi com firmeza, depois da hesitação inicial. E ele:
- Ah! É conhecida?
E eu:
- Sim, muito. O Tony (o mestre-de-cerimónias), por exemplo, conhece-a muito bem.
- Quantos foram?
- Perdão?
- Quantos já actuaram até agora?
- Cinco.
- Ah! Estou atrasado, então…
- É normal, são onze da noite e o espectáculo começou às 9.
Calou-se.
A Lady Something era australiana, pelo menos era o que ela dizia num dos seus poemas. Tinha um copo de vinho cheio, quando começou a dizer os textos, mas à medida que falava, o líquido ia-se entornando no palco. Acho que não conseguia equilibrar o microfone numa mão e o copo de vinho na outra. Foi pelo menos o que pensei. Talvez por solidariedade (foi, pelo menos, o que me apeteceu pensar), o copo de cerveja do meu interlocutor, tombou-se ligeiramente sobre mim. Eu reagi com discrição. Ele permaneceu calado. A Lady Something não se calava e ia aumentando o tom de voz de forma não muito agradável, a caixa de sintetizadores começou também a fazer barulho. A voz da Lady Something entrou em distorção e o copo caiu-lhe da mão, escapando-se de se estilhaçar com a agudeza dos decibéis. À minha volta, as pessoas iam, finalmente, desistindo de ter conversas e prendiam-se ao palco e à figura excêntrica de Lady Something, que a essa altura já só berrava esganiçada, o repetido e fastidioso verso:
“I am a poet! Let me be!”
De súbito o silêncio magro, seguido do apoteótico aplauso. O Mister Nothing, ao meu lado, esqueceu-se do copo de cerveja no balcão, pela primeira vez, saltou do banco para aplaudir de pé e gritar “bravo”, entre outras coisas imperceptíveis em alemão.
- Esta mulher é fantástica! Tenho que a procurar no Google! Qual é o nome dela? – Disse-me, cansando, ainda, as mãos no aplauso.
- Lady Something, é muito conhecida! - Respondi embrulhada numa serenidade estranha e desapareci.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Tia Elvira

Quando a vi pela primeira vez devia ter 10 ou 11 anos, lembro-me de várias coisas surpreendentes. Primeiro surpreendeu-me o facto de ela existir, porque só lhe conhecia o nome, escrito na primeira página do único dicionário que existiu (e ainda existe) lá em casa, enquanto eu e os meus irmãos frequentávamos as várias etapas escolares; e uma fotografia a preto e branco, onde ela parecia (para além de muito bonita) muito alta. A primeira vez que eu vi a tia Elvira foi também a primeira vez que vi as filhas dela, as minhas primas brasileiras, e a questão da estatura de toda a família foi uma decepção para mim, porque eu achava que todas as pessoas do Brasil eram altas, como estava habituada a ver nas novelas da Globo. Mas afinal, as minhas primas, que já eram quase adultas, eram mais ou menos da minha altura. Por outro lado, também a fotografia que eu conhecia da minha tia Elvira alta não correspondia em nada à verdade.

Quando ouvi a tia Elvira falar com as mesmas palavras da minha avó, mas com um sotaque brasileiro, custou-me a perceber as suas raízes, mas depois, fui ouvindo como ela falava e movia as mãos com unhas pintadas de branco (até aí eu só tinha visto unhas pintadas de vermelho ou unhas por pintar, ou unhas pintadas de preto - nas novelas da Globo, porque a televisão só tinha duas cores), e como ela pedia ao meu pai que contasse aquelas histórias, que eu já conhecia de ouvir muitas vezes o meu avô contar, e fui-me deliciando com o seu jeito único e genuíno de se pôr em gargalhadas até às lágrimas com o que o meu pai ia contando. E os dois riam muito e faziam-me rir também. Ao contrário do que se passa com os filhos das outras pessoas, que detestam ouvir contar sempre as mesmas passagens familiares, eu ainda hoje me fascino com essa repetição. A tia Elvira também. Via-se bem que ela também gostava de ouvir as histórias que todos conhecíamos. Via-se bem que ela era uma pessoa especial só pela forma como se punha a ouvir. Via-se que gostava de ouvir os outros e essa é uma qualidade suprema num ser humano.

Ando há meses com a ideia fixa de lhe enviar um livro, porque sei que ela fazia nisso muito gosto, quanto mais não fosse para mostrar às amigas o livro da sobrinha escritora. Eu sei que ela é vaidosa disso, porque ela mo disse, mas também sei que, como boa ouvinte que é, também se poria a ler o livro em voz alta, à espera de soltar aquela gargalhada tão só sua. Mas com ou sem justificação, a verdade é que ainda não lho enviei e disseram-me, entretanto, que ela estava para mudar de casa. Que há muito se preparava para mudar de casa, sem vontade.

Ontem, quando o meu irmão do meio me ligou para me dizer que a tia Elvira tinha morrido, eu já sabia que ele me ia dizer que a tia Elvira tinha morrido, mas nem por isso fiquei menos triste. A morte é assim: certa e triste. E se for mais do que isso, a mim não me interessa saber. Acho que à tia Elvira nem isso lhe interessava, porque a tia Elvira adorava viver e experienciar as coisas da vida. Passei a noite em claro, projectando imagens do seu sorriso e escutando o som da sua gargalhada de menina encantada. E no meio da tristeza e algumas lágrimas, acho que adormeci com um sorriso. Quando acordei muito cansada e muito ensonada para ir trabalhar, ouvi-me dizer isto:

- Bom dia, tia Elvira!

E parece-me que a ouvi responder "bom dia" sem sotaque.

Da próxima vez, talvez lhe peça a direcção para lhe enviar um livro com dedicatória. Ficarei atenta, como sei que ela nunca deixou de estar.

Bom dia, tia, bom dia!


segunda-feira, 13 de julho de 2009

Eu vi isto num filme, por isso, pode não contar para grande coisa.



Mas, eu vi isto num filme em Fevereiro e hoje lembrei-me disso, porque ia no metro e vi duas pessoas a insultarem-se como deus manda ao diabo fazer (ainda agora ia maiusculizar “deus”, mas depois não consegui maiusculizar “diabo” e, fiquei-me pelo factor comum), e isso talvez já conte para alguma coisa. Isto que eu tenho em mente contar, mas não sei por onde começar, pode muito bem resolver-se por eu me decidir que nomes dar às figuras centrais de isto que eu tenho para contar. A maior parte das vezes, um nome não me diz nada, mas neste caso, a escolha de dois nomes, pode representar a diferença entre contar isto que me apetece contar e calar-me. Por isso, acho que já estou mais ou menos decidida: pego no nome da única pessoa israelita que conheço e poderia pegar no nome da única pessoa palestiniana que conheço, mas como não consigo pronunciá-lo, muito menos escrevê-lo, vou ter que procurar outro.

Pego em dois nomes e conto uma história, que (mais vírgula menos parêntesis) vi num filme, por isso, pode não contar para grande coisa. Seja como for, a história é simples e curta. Das mais simples e mais curtas que já ouvi. Das mais belas também.

Yael exerce medicina num hospital de Jerusalém. Souad exerce enfermagem no mesmo hospital. Yael e Souad encontram-se ocasionalmente nos corredores do hospital e Souad sorri sempre e tenta entravar conversas tontas para as quais Yael sugere não ter tempo. Mas Souad é persistente e tem graça. A certa altura a corte de Souad está de tal forma bem montada, que deixa Yael sem defesas, sem querer ter defesas, sem ver motivos para continuar numa posição defensiva. E, coisa simples, o amor cresce. Sim, porque o amor não é como uma mesa feita de perfeitos vértices que, logo que um carpinteiro decide, está terminada (completa) e não tem mais por onde crescer. O amor (dizem os que sabem e outros que se armam ao pingarelho) é coisa que tem uma gestação própria, dentro das vidas próprias de cada um, onde o limar de arestas e ajuste de vértices é coisa de que se prescinde naturalmente.

Mas eu vi isto num filme, por isso, pode não contar para grande coisa.

Eu vi o filme e vi Yael e Souad, logo que o filme acabou de ser projectado (ao vivo, quero dizer). E ainda mal tinha recuperado do choque que é ver-se um documentário e “realizar”(como dizem as pessoas que vêem o “Bom Português” e dividiram a carteira com a “Edite Estrela”, que também fica bem entre aspas) que aquilo é a sério, quando Yael e Souad (eu já disse que isto são nomes fictícios?) me aparecem à frente em carne e osso, réplicas perfeitas das imagens do ecrã gigante e embrulhadas numa chusma de palmas e vivas, que parecia não ter fim… Mas teve, porque Souad agarrou-se com firmeza ao microfone e falou e encantou e voltou a falar antes, durante e depois de Yael. E só se falou de amor. Mais nada. Um amor possível em qualquer lado, mas muito (demasiadamente) improvável em Jerusalém. Um amor entre israel e palestina (ainda agora ia maiusculizar “israel”, mas depois não consegui maiusculizar “palestina” e, fiquei-me pelo factor comum).

Eu vi isto num filme, por isso, pode não contar para grande coisa. Até porque isto era apenas uma história muito simples e muito curta sobre o amor. Não há mais nada, a não ser que alguém se interesse pelo tamanho indecifrável das notas de rodapé, que normalmente nos vinculam a contratos incontornáveis. Esta é uma delas. Isto é incontornável e está muito ao alcance das nossas responsabilidades...Assinemos a favor do amor!

Nota: eu vi isto no filme “City of Borders”, da realizadora Yun Suh. Quando Yael e Souad se dirigiram a palco vinham de mãos dadas, sorrindo, obviamente satisfeitas por poderem demonstrar o seu amor, sem a censura, o medo, o pavor de serem condenadas por crimes chamados de honra, que profunda e lamentavelmente tanto desonram o amor. Mas elas não vinham sozinhas. Elas não estavam sozinhas. Elas não partiram sozinhas para Jerusalém e no regresso iam convictas de que será possível construir a família com que há muito sonham. E pelo que vi, são meninas para conseguirem!

Deixo-vos a foto, porque eu não vi estas mulheres num filme (ainda agora ia maiusculizar “mulheres”, mas fico-me pelo seu amor comum) e, sei que isso pode valer de alguma coisa.





segunda-feira, 6 de julho de 2009

A rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas

Viver num país estrangeiro, ainda que mantendo uma saudável carapaça sobre a cultura de arremesso (passo a figura olímpica desportiva) dá-nos muitas vezes a sensação do rato que procura o queijo num labirinto sem fim. A língua é, sem dúvida, a principal motivadora dessa estranheza e, para mim, o estímulo maior para saborear o queijo.

Uma das minhas gafes favoritas de uma amiga que está a aprender português é a confusão entre os adjectivos “perigosa” e “preguiçosa”, passa a vida a dizer que é perigosa para aprender português, quando o que quer dizer é que é preguiçosa. Eu acho que esta gafe representa um quase proverbial acto falhado, considerando que na realidade é um perigo comunicar-se numa língua que não conhecemos bem. De entre os meus incontáveis “perigos” linguísticos em alemão, há um que me há-de dar a alongada alcunha de “a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas”, porque até hoje nunca consegui distinguir (e também já perdi as esperanças de o fazer) entre as palavras “Kirche” (igreja) e “Kirsche” (cereja). Passei um fim-de-semana na Saxónia no extremo Leste da Alemanha, um pedaço de terra maravilhoso, que por esta altura está cheio de cerejas, e parece-me que à conta disso, toda a gente com quem me cruzei ficou a achar que eu sou uma fanática religiosa com vontade expressa de orar ao senhor a cada dez minutos. Ninguém percebeu que as cerejas são a minha verdadeira perdição e eu também não consegui explicar-me.

Mas, à parte desta questão da língua, há, naturalmente, outros motivos para o labirinto se adensar. Não vou fazer esculturas a estereótipos culturais, até porque com esses vivo eu bem sem me perder. Queria só falar de um fenómeno relativamente recente, mas já completamente instalado num refrescante conceito de mobilidade em toda a Europa e especialmente bem recebido na Alemanha que é facultado, a baixo custo, pela “mitfahrgelegenheit”, que é como quem diz: “boleia partilhada”.

Pois é, a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas achou possível aderir a este conceito moderno de transporte, de ânimo leve, deixando para trás a desconfiança do bom português, que em relação a grandes inovações ostenta sempre um retrógrado balão de pensamento, onde se lê: “nunca fiando, nunca fiando”. Sem confiar, mas já instalada no primeiro carro com mais quatro pessoas estranhas entre si, a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas fez a viagem entre Berlim e Bautzen sem nada a assinalar, tirando o facto de a música do condutor ser de um perigoso mau gosto, que num momento ou outro parecia fazer estalar os vidros e ameaçava rebentar com a escala de decibéis. Incomodou, provocou dor de cabeça, mas o alívio de chegar a qualquer lado sã e salva, tudo vence. Tudo ou quase tudo. É que, na viagem de volta, a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas sentiu vontade, como qualquer católico que se preze, de rezar dentro de igrejas e até lhe ocorreu que em casa ficara um terço com a inscrição “em Fátima rezei por ti” e desejou ter esse objecto para, pelo menos, o fechar dentro de mãos e esconder o seu medo entre as contas.

Uma viagem de aproximadamente 400km foi feita em menos de 2 horas e a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas tinha medo de coisas velozes, mas não disse a ninguém. Aguentou o pavor estrada fora, onde a velocidade não tem limites, aguentou a música de perigoso mau gosto (a qual, percebe-se, depois, está sintomaticamente associada à velocidade e a outras situações limite) e chegou a Berlim mais cansada do que se tivesse levado o triplo do tempo para fazer a viagem. Não disse nada porque seria perigoso confundir as palavras “langsam” e “schnell”, mentiu-se em pensamento a rapariga que, ao chegar a casa, só pensava no sabor da cereja.