quinta-feira, 23 de abril de 2009

Kiki Blofeld

Coleccionando pedacinhos patéticos de papel. Uma esplanada por onde o sol se solta, como um leão sobre as presas. E nós a deixarmo-nos abocanhar pela sua fúria faminta, a abrirmo-nos como uma mesa longa num banquete medieval. Um homem, julgando-se feliz, agarra entre as mãos um litro de cerveja morta, cruza as pernas sobre a invenção de um ar tranquilo, finge uma conversa com uma companhia inexistente e avermelha-se no caco da cabeça, como se tivesse vaidade em oferecer mais pele ao sol do que o resto da gente. Pensa que é mais feliz porque tem mais espaço para o sol percorrer. Pensa nisto e sorri e nem lhe ocorre que é gordo e disforme e feio. Não sabe que é menos feio, quando sorri, não sabe que ganha formas joviais quando sorri. Não sabe que quase levita, quando sorri. Não sabe que sorri. Não saberá, se eu não lho disser. Não saberá que escrevo sobre o sorriso. Porque não o adivinha, sequer o adivinha.
E o silêncio cerca-nos a todos, como uma bola de sabão gigante, que se lançou ao ar, ignorando que rebentaria, sob os nossos olhares.
A ignorância, a mais imberbe de todas as palavras, a provocar-me, de novo. A visitar-me com a regularidade de uma enfermeira ao doente mais delicado. Olho em volta e tudo é ignorância: O homem gordo, os pés descalços, pousados sobre o inalterado asfalto, sobre o verde do que um dia foi campo e agora é terra solta, o movimento de cadeiras a reclamarem vontade própria. E esta cerveja que se esvaziou para dentro de mim, sem que lhe notasse a vontade. O tempo parou sobre Berlim, sobre mim, enquanto inventava rimas iguais sobre pedacinhos de papel.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Aqui era o título


O Homem que se senta sozinho à mesa não se senta à mesa e não está sozinho. A mesa é que estava a ser apenas móvel. Agora que o homem sozinho decidiu sentar-se à mesa, a mesa é parte dessa multidão que o homem carrega. Porque um homem sozinho é sempre muito mais gente do que um homem com outro homem. E uma mesa com um homem só fica invariavelmente mais povoada do que uma mesa com duas pessoas, ou com uma família a jantar.
Uma família a jantar, ou duas pessoas sentadas a uma mesa têm-se unicamente uma à outra ou têm-se entre si. E o incómodo que é terem-se num mesmo tempo e num mesmo espaço não lhes permite o peso (ou o conforto) de carregarem outras pessoas.
Pode parecer este universo complicado. Pode parecer este discurso tonto. Mas o homem que opta por se sentar sempre sozinho à mesa, a uma mesa qualquer, é um homem mais povoado do que todos os homens (e algumas mulheres) que se sentam à mesa uns com os outros, uns ao lado dos outros, ou até frente a frente.
Eu, por exemplo, sou uma mulher sentada sozinha à mesa e, podem ir à roda do mundo perguntar, e (querendo!) ficam a saber que, embora solitária, eu sou a mulher menos sozinha de todas as mulheres com quem já falei ou apenas privei com um olhar de longe (porque se priva muito com um olhar longínquo, contando que esse olhar não seja distante).
Antes de abrir este guardanapo de papel para escrever, eu era apenas um ser humano sozinho num bar. Depois (agora) sou todos os olhares que se esquecem de quem está frente a frente ou lado a lado, e se põem a querer ser, como eu, homens e mulheres sozinhos sentados à mesa. E quando esta pequena, mas sugestiva reflexão terminar, suspeito que deixarei de ser uma mulher sozinha à mesa, e passarei a ser uma mesa vazia a olhar-me de frente.

Capítulo XIV (extracto)

Faço-me diletante sobre esta Lisboa escura. Lançou-se sobre a cidade uma poeira que enegrece os rostos das pessoas. As criaturas tristes vieram todas cá atracar, como barcos à deriva. Fazem-se à madrugada e às tardes inférteis. São desocupados, desempregados, rendidos ao rendimento mínimo e a procriar filhos tristes de ano para ano, são velhos com cartões azuis do mini-preço, enfiados no segundo separador da carteira, logo a seguir ao passe social, e fazem conversas aflitas nas paragens de autocarro, cercados por trouxas e sacos de plástico, enrugados pela sucessão dos dias sem esperança; arrastando-se entre pregões de cauteleiros e turistas que deslizam como mel no favo aberto dos carteiristas. E os pagadores de impostos a acotovelarem-se por cima dos horários, a espremerem-se no interior de um cartão de crédito, a fazerem monte num hipermercado aos domingos e feriados, a sumirem-se no interior de um cartão de crédito. E o cheiro forte da lixívia lançada escadas abaixo de um bairro antigo, numa tentativa desalentada de ocultar a fetidez do mijo. E, entre estes e outros odores da cidade nocturna, os artistas, engavetando a vergonha e o desalento numa ideia de projecto sem aprovação à vista, sem arrojo suficiente, sem arte que se imponha ao estigma da arte para as massas, a perderem-se na construção abstracta de outra colina, de onde se possa mirar o vazio encolhido nas multidões.

Fecha a Porta Devagar


O curioso acerca do primeiro dia da descoberta do amor, foi ter recomeçado a contagem dos dias numa perspectiva perfeitamente aleatória. O que quer dizer, que o segundo dia da descoberta do amor não aconteceu imediatamente ao primeiro e o terceiro não aconteceu a seguir ao segundo e assim sucessivamente. Assim, também, no primeiro dia não aconteceu nada que diga directamente respeito ao amor. Esse dia foi o começo de algo que terá nascido, quem sabe, umas centenas de dias depois, sem sentido algum de precisão. É, aliás, essa falta de precisão clara e inequívoca, a essência da contagem do tempo que concerne ao amor.
No primeiro dia da descoberta do amor, comecei a contagem aleatória dos factos e das pessoas da minha vida. Não sei a qual dia corresponde, este em que escrevo estas palavras, sei, todavia, que continuo nesse processo de contagem infinita e sem numerologia.
Aleatoriamente, portanto, encontrei pessoas, apaixonei-me por elas, vivi com elas e como elas. E, como elas a mim, perdi-lhes o rasto. Aleatoriamente, portanto, tive dias felizes e momentos de desespero e de profunda tristeza. Contei, aleatoriamente, as despedidas definitivas e os reencontros. Aleatoriamente, vivi em espaços diferentes, viajei sempre muito, aleatoriamente.
Conheci cidades. Usei os pincéis da memória para pintar a arquitectura dos espaços em que vivi.
Foi no meio desses esboços imperfeitos que descobri um tal de sentimento de pertença, que é o divã que hoje me acolhe a exaustão. Descobri a importância topológica das coisas que são nossas. E quando, às vezes, me perguntavam se sentia orgulho no meu país, respondi sempre, desde a primeira vez, com uma inusitada confiança: Não. Mas sinto que me completa muito! O orgulho, esse, crescia depois, provocado pela firmeza de tal resposta. Não me parece, no entanto, que fosse algo ensinado pelo meu país, porque nele tudo se encolhe, tudo se esconde e se envergonha de ser.

Do medo não sobra nada

Do medo não sobra nada
Nem o olhar
Nem o sorriso
Nem a esperança
Nem o sol que inunda as tardes.


Do medo não sobra nada
Nem as promessas se cumprem
Nem os espaços se crescem
Nem o tempo se emancipa.

Do medo não sobra nada
Nem a carcaça do amor
Nem a vontade de ser
Nem o ser que quer ser.


Do medo não sobra nada
Nem tu
Nem eu
Nem a própria razão do medo.


Do medo não sobra nada

Não se faz nada
Não cresce nada
Nada se cria
Muito menos amor
Muito menos poesia.

Carne Torpe (texto da capa)


Sete da tarde.

Às sete em ponto. Quando tiveres chegado com as compras que ficaste a dever ao merceeiro, estarei aqui, à espera, sentado, com um copo de vinho à frente, a desenrolar da língua mais um interminável pedido de desculpas...
Poderia escrevê-lo, enquanto a hora está longe, assim escaparia à pressão de beber um copo atrás do outro e ficar irremedialvelmente bêbado.
Podia forjar um discurso pomposo e decorá-lo e depois, debitá-lo com toda a calma... Podia esperar pelas tuas perguntas, ou assistir impassível ao teu silêncio tempestuoso de quem ignora a minha presença. Podia fazer de muitos modos, mas não tenho certeza nenhuma, a não ser que chegarás às sete em ponto, como de costume, com o teu ar vermelho arredondado de minhota ocupada.
Os discursos premeditados são falsos, e tu intervirias a meio do primeiro olhar para me acusares de cobardia ocular ou me fechares as pálpebras com um bofetão sentido. haverias de convidar a tua mãe, cheia de beatitudes balofas para aperaltar o nome de Deus em frente do meu copo de vinho laico,(...)

Buena-dicha,1996

Pedi lume e nem sequer tinha cigarros para acender. Fiz um gesto ordeiro de quem ia pegar fogo e, ela incendiou de pressa. Estendi a mão para lhe agradecer... e ela, a dela para se despedir. Vi-a entrar desmascarada num autocarro imundo de suor... e depois na porta da frente da minha casa e nos lençóis gastos da minha cama. Vi-me a entrar por ela adentro. Senti o barulho da primeira porta a fechar-se, no primeiro sono das nossas vidas.
Quando acordei fiz-lhe perguntas e ela disse que sim. E disse o meu nome e eu o dela. Fomos inventando outras palavras, que dizíamos sem pudor e outras coisas que fazíamos sem memória. Fomo-nos deixando estar assim durante muito tempo... até que um dia acendeu um cigarro e, incendiou depressa.

sábado, 18 de abril de 2009

BIOGRAFIA

Eugénia Brito (Arcos de Valdevez, 1973) é Licenciada em Ensino de Português e Inglês, pela Universidade do Minho. Lecciona, com alguma regularidade, desde 1999, as disciplinas de Português, Inglês e Expressão Dramática no Ensino Profissional.
Em 2002 publica, em Edição de autor, o romance epistolar Carne Torpe e é nessa altura que resolve olhar de longe para o seu país, a sua gente e todos os seus universos pessoais, iniciando períodos intercalados de estadias no estrangeiro, assegurando a sobrevivência com trabalhos no ramo da hotelaria, a tempo parcial, dedicando o resto do tempo à escrita.
Não ganhou qualquer prémio literário (seguramente também porque nunca concorreu a nenhum); não participou em cursos de escrita criativa ou eventos literários de qualquer espécie. Não advoga filiação ou influência literária alguma, assumindo o universo literário como o mais imperfeito da humanidade. Tem um fraquinho pelo surrealismo. Acha uma perfeita perda de tempo ler duas vezes o mesmo autor, mas fê-lo inúmeras vezes. Tenta ser sempre coerente, mas às vezes os actos antecipam-se à reflexão. Considera o acto da leitura o mais criativo de todos, por isso lê com prazer e como quem cria. Colaborou com um jornal (o Povo da Barca) e uma revista (365), porque lhe apeteceu.
Para além do livro de cartas “Carne Torpe”, publicou o romance “Fecha a Porta Devagar”, com edição do Atelier de Produção Editorial (2008).
À data de criação deste Blogue vivia em Berlim sem bolsa e de bolsos vazios, mas ainda assim a escrever. Nesta cidade completou o seu terceiro livro, “zapping sobre as madrugadas idênticas”*****e iniciou o quarto trabalho de ficção...

Errata e actualizações (Novembro de 2012)

a) Em vez de: Não ganhou qualquer prémio literário (seguramente também porque nunca concorreu a nenhum), leia-se: Uma vez concorreu a um prémio e ganhou-o;
b)***** Romance vencedor do Prémio Literário Cidade de Almada-2010;
c) Onde constavam as reticências(...), acrescente-se agora: "recentemente concluído" e que se mantenham, depois, as reticências.

Nova actualização (Agosto de 2019)

a) O 4º trabalho de ficção com publicação em 2014, veio a chamar-se. "Não sabias o que levavas às costas?" e é uma edição muito bonita com desenhos de Arkaitz del Rio.

b) Prevê-se que o romance iniciado em 2013 não se dê por findo antes de 2023. Não tem título.