Nos primeiros
anos de vida, as palavras acontecem como uma coleção de troféus, não nossa, mas
dos adultos que nos rodeiam. Não sei qual foi a minha primeira palavra e acho
que os meus pais também não. Quando se é o quarto filho de um casal, julgo que
o encanto que isso possa ter é coisa de somenos. Se conseguissem imaginar a
importância que isto viria a ter para mim, talvez os meus pais tivessem
guardado, nas paredes da nossa casa, os meus primeiros sarrabiscos de insultos à
ortografia e torpes acrescentos ao português.
Mas não:
bastava ser primavera para que as paredes – espelhos estilhaçados da minha
rebeldia – fossem limpas, substituindo-se a luminosidade do interior de cada
palavra escrita, por umas valentes pinceladas de tinta. Foi assim que se apagou
o meu nome das primeiras vezes: a tinta apagava-se com tinta e o fenómeno
parecia conter apenas o tamanho das mãos que compunham e ocultavam palavras.
O processo de
anulação constante do trabalho realizado pelas minhas mãos duraria até ao ponto
preciso em que entendi que as palavras nascem do silêncio das mãos. As mãos silenciosas
são lanternas acesas, que se deslocam à frente do pensamento e que conduzem aos
sonhos a que damos voz. A palavra “palavra” não fala: diz como pulsa o centro
do mundo – o nosso interior – e gravitando sobre si própria acumula os milhões
de tentáculos que lhe garantem a locomoção: o significado, quer dizer, o
significar, porque palavra é verbo e saber que o é. É saber agir e saber estar.
Nas paredes de
uma casa ou de um muro manchado com impropérios, ou de um cartaz levantado ao
alto em dia de revolução, ou dos lábios cerrados de um mudo, ou da ignorância
sobre as minhas primeiras palavras, até que a boca se canse e as mãos falem, há
de figurar uma e outra vez, a sombra nítida do meu nome apagado: rebelião.
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