sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Verbum


Nos primeiros anos de vida, as palavras acontecem como uma coleção de troféus, não nossa, mas dos adultos que nos rodeiam. Não sei qual foi a minha primeira palavra e acho que os meus pais também não. Quando se é o quarto filho de um casal, julgo que o encanto que isso possa ter é coisa de somenos. Se conseguissem imaginar a importância que isto viria a ter para mim, talvez os meus pais tivessem guardado, nas paredes da nossa casa, os meus primeiros sarrabiscos de insultos à ortografia e torpes acrescentos ao português.
Mas não: bastava ser primavera para que as paredes  espelhos estilhaçados da minha rebeldia   fossem limpas, substituindo-se a luminosidade do interior de cada palavra escrita, por umas valentes pinceladas de tinta. Foi assim que se apagou o meu nome das primeiras vezes: a tinta apagava-se com tinta e o fenómeno parecia conter apenas o tamanho das mãos que compunham e ocultavam palavras.
O processo de anulação constante do trabalho realizado pelas minhas mãos duraria até ao ponto preciso em que entendi que as palavras nascem do silêncio das mãos. As mãos silenciosas são lanternas acesas, que se deslocam à frente do pensamento e que conduzem aos sonhos a que damos voz. A palavra “palavra” não fala: diz como pulsa o centro do mundo – o nosso interior – e gravitando sobre si própria acumula os milhões de tentáculos que lhe garantem a locomoção: o significado, quer dizer, o significar, porque palavra é verbo e saber que o é. É saber agir e saber estar.
Nas paredes de uma casa ou de um muro manchado com impropérios, ou de um cartaz levantado ao alto em dia de revolução, ou dos lábios cerrados de um mudo, ou da ignorância sobre as minhas primeiras palavras, até que a boca se canse e as mãos falem, há de figurar uma e outra vez, a sombra nítida do meu nome apagado: rebelião. 

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