sábado, 5 de dezembro de 2009

Olhá bulha!



Quando eu andava na escola primária, lá no cimo do monte da minha aldeia, lembro-me de ver alguns miúdos a rolarem pelo monte abaixo, empurrados por outros maiores, e da poeira que se levantava em volta do par de professoras, que enfiavam, em câmara lenta, os finíssimos tacões no caminho trilhado pelos pés das crianças (pés descalços ou enfiados em galochas rotas e gastas, que lhes chegavam aos pés em segunda mão - Ou será mais ajustado dizer segundos pés? - Esse trilho, para além de acentuado e sinuoso, era riscado por entre os tojos, as boticas (aos anos que não vejo boticas!) e as giestas, sempre a crescerem com demasiada pressa.
Certa altura, quando eu andava na escola primária, um miúdo graúdo, inimigo público do meu irmão mais velho, bateu-me. Eu não fazia ideia porque é que um canastrão daquele tamanho se metia com uma meia-leca como eu, mas soube, inexplicavelmente, feri-lo na parte onde o seu orgulho começava a despontar. Acertei-lhe com um pontapé em cheio e com todas as minhas forças (que não seriam muitas!) e não sei se aquilo lhe doeu muito ou se ele fingiu que lhe doeu muito, mas a escola inteira bateu palmas e riu muito! (Inteira, não… houve três miúdos que foram chamar o meu irmão, mas quando ele chegou para me salvar do gorila, já eu tinha arrumado a questão). O rapaz grande riu-se com o resto da escola e contou ao meu irmão o que se tinha passado com inegável orgulho da minha desenvoltura. Eu, claro está, não percebi nada do que se estava a passar e lembro-me de ver selado, entre os dois rapazes, um aperto de mão e um pedido de desculpas, prontamente aceite.
Hoje, à distância, percebo ainda pior essa cena: Por que razão o rapaz a quem eu acabara de humilhar terá feito as pazes com o meu irmão, logo naquela circunstância? Lembro-me do nome desse rapaz. Não me lembro do rosto, mas se o vir hoje, talvez ainda o reconheça, talvez sorria, e ele, talvez ainda veja em mim a menina de 6 anos que lhe amassou os tomates. Não lhe passará, por isso, pela cabeça que 30 anos depois, eu teria contado este episódio num texto público. Na verdade, duvido que lhe passe pela cabeça que exista gente que ocupe horas do dia, a fazer isto que eu faço. Não me lembro se chegou a acabar a escola primária e se algum dia conseguiu acabar uma frase sem soletrar. É muito provável que não. Apesar de não saber nada dessa pessoa, fiquei, desde aquele dia de há mais de trinta anos, com a sensação de que aquele rapaz era boa pessoa. Ele e o meu irmão nunca mais lutaram na escola e eu senti-me melhor por isso.
Quando eu andava na escola primária, tinha terror de ir para a escola primária. Eu detestava a escola primária. Quando andava na escola primária vivi e aprendi, num ritmo alucinante, muitos sentimentos maus, tão maus, que quando, mais tarde, tive idade para experienciar essas situações (se é que há uma altura para a agressão, a exclusão, para o assédio, a intimidação ou a humilhação), já não as senti… Acho que só as tentei perceber. Acho que só tentei perceber o que sentia na escola primária, quando os miúdos pequenos apanhavam dos maiores e quando todos apanhavam das professoras, e quando todos se vingavam das professoras, vestindo-as de pó, à descida do monte, e como sonhávamos todos como seria, quando fossemos grandes e pudéssemos vingar todo aquele sofrimento.
Mas depois, crescemos todos, uns melhor, outros pior, e quando fomos para o liceu (os 3 ou 4 que passaram do 6º ano), ninguém andava à porrada com ninguém. Ninguém queria sequer saber disso. Porque havia outra fome e outra sede, ninguém explorou a vingança.
Passaram-se muitos anos. Por alguma razão, eu continuo a ir à escola. Às vezes, parece-me que nunca saí do liceu, fiz (vou fazendo) curtos intervalos para me convencer de que o tempo passa, como para todos, mas volto sempre à escola. Nos últimos tempos, no entanto, tenho-me sentido envolvida por essas sensações que tinha na minha escola primária. A escola onde trabalho e as escolas que a cercam são um verdadeiro campo de batalha. As escolas, a estação de camionagem, os lugares públicos e menos públicos, a cabeça dos adolescentes, os corações dos adolescentes, a cabeça e os corações de um ou outro pai desses adolescentes, e os professores desses adolescentes, onde eu me incluo.
A diferença é que, quando eu andava na escola primária, chamava-se àquele momento de luta: zaragata ou bulha, vocábulos que até podem ser considerados interessantes, num determinado universo semântico. Agora, há o bullying, que para além de ser uma palavra sem significado que eu consiga apreciar, me traz sérias dificuldades em perceber qual é a graça de andar à bulha, sem que alguém grite: olhá bulha! Será que eles gritam: “olhó bullying!? - Não me parece. Aliás, os conceitos afastam-se bastante. O Bullying caracteriza-se por um clima de tensão crescente, provocado por exercícios de intimidação psicológica, de ameaças físicas; pelo porte de armas brancas ou de fogo, dentro de mochilas de marca, cheias de tudo, menos de cadernos ou livros; há especialistas a estudarem esse fenómeno social, tão amplo e complexo, que nem se lhe arranja uma palavra que a designe em português. As únicas pessoas que estudavam a bulha eram as que participavam nela activamente: havia um vencedor e um vencido esmurrado (normalmente no nariz), vigiados de perto pelos outros colegas, e o caso dava-se por encerrado. A maior parte dos miúdos sabia o motivo da zaragata e, se alguém passasse muito dos limites, intervinham.
Eu não sei o que se passa nas nossas escolas, com os nossos adolescentes. Há milhares de explicações, que saltam à vista todos os dias: famílias desfeitas, imagens de violência a saltarem de ecrãs de televisão e monitores de computadores, filhos que não conhecem a voz dos pais, e outros que mais valia não conhecerem, as horas absurdas que passam sozinhos, sem a presença de uma figura responsável, a falta de responsabilização dos pais. etc. etc. (que para tamanha enumeração mais vale ler os estudos dos senhores que são pagos par os fazer).
Mas isto preocupa-me. E confesso que tenho uma certa vergonha acrescida, porque os pais destes adolescentes têm a minha idade. Não sei, portanto, o que me preocupa mais: se os filhos por educar, se os pais que deseducam. E é aqui, que me ocorre isto: Quantas pessoas, como eu, tinham medo de ir à escola primária? Quantas, como eu, mataram a sede de vingança desses anos, em momento adequado? Em potência, eu poderia ser uma dessas mães. Não sou. Mas pergunto-me, que potencialidades teria um filho meu, só por ser meu filho? Seriam inferiores ou superiores às potencialidades que um filho meu teria só por viver nesta sociedade de bulhas com tiques estrangeiros?

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