Uma janela, a palavra "saudade" repetida, uma frase simples sobre a vontade de amar.Uma imagem completa. Pena não ser eu essa janela, não ser eu essa saudade, não ser eu esse amor. Posso apenas fazer-me parede e manchar-me de palavras boas ou más, tanto faz...
domingo, 27 de dezembro de 2009
TODAS AS CÂMARAS PARTIRAM PARA OUTRA GUERRA
DOZE MESES MENOS UM
Aqueles que sabiam
o que se passava aqui
têm que dar lugar
àqueles que sabem pouco.
E menos que pouco
E até tão pouco quanto nada.
Wislawa Szymborska
TODAS AS CÂMARAS PARTIRAM PARA OUTRA GUERRA
no Estaleiro Cultural Velha-a-Branca
Dia 28 de Dezembro 2009.
Sessões às 22 e às 23 horas.
O Sindicato de Poesia termina mais um ciclo de recitais com uma ‘performance’ sonora e imagética.
Uma sala vazia e às escuras, sem actores, só as vozes dos actores e as palavras dos poetas que lhes dão vida. E ainda muitas imagens, muitos universos e muitas certezas.
O último rascunho de DOZE MESES MENOS UM é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a vida e a morte e sobre o papel dos media nas sociedades. É um jogo de imagens e palavras que vão desembocar no beco do quotidiano e na esperança que a humanidade deposita em guias/deuses/ídolos.
‘Todas as câmaras partiram para outra guerra’ é um exercício ruidoso da nossa liberdade de desconstruir, de misturar ideias e contextos, e de nos repetirmos, repetirmos o que está dito, o que já sabemos, e do qual afinal, pensando bem, sabemos muito pouco.
Direcção: Sofia Saldanha
Sonoplastia: Paulo Sousa e Sofia Saldanha
Imagens/Video: Pedro Guimarães
Selecção de textos: Ana Gabriela Macedo, Manuela Martinez e Sofia Saldanha
Traduções: Ana Gabriela Macedo, Ana Maria Chaves, António Ramos Rosa, Eugénia Brito, Jorge Fazenda Lourenço, Marta Catarino e Sofia Saldanha.
Vozes de Ana Gabriela Macedo, António Durães, António Fonseca, Eugénia Brito, Isabella Lennert, Luís Barroso, Luísa Fontoura, Manuela Martinez e Marta Catarino.
Textos de Isabella Lennert, Sofia Saldanha, Eugénia Brito, Charles Bukowski, ee cummings, Carol Ann Dufy, Joe Frank, Mourid Barghouti, Mahmoud Darwish, Dunya Mikhail,Wislawa Szymborska, Czeslaw Milosz, Linda Gregerson, Irving Feldman e Paul Éluard.
Cumplicidades: Estaleiro Cultural Velha-a-Branca e Rádio Universitária do Minho
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Amigos de sonho
Hoje sonhei com muitas pessoas que conheço e com outras que nunca vi. Sonhei com pessoas de quem gosto muito e sou capaz de fazer o exercício de enumerar alguns nomes, só porque é Natal. Mas o que me levou a escrever sobre o meu sonho foram as pessoas que lá figuravam, com quem eu sou (ou fui), por norma, apenas cordial e simpática, porque são amigos dos meus amigos, por exemplo, ou porque lá calhou de terem sido cordiais e simpáticos comigo as vezes suficientes para serem notados e verem esse tratamento retribuído.
Nesta última categoria, encontra-se uma das figuras centrais do meu sonho: a Sarinha. Eu não vejo a Sarinha há mais de uma década e neste período não foram muito abundantes os pensamentos dedicados a esta pessoa. Na verdade, não faço ideia em que mundo ela se move hoje. Lembro-me da sua figura débil e do seu olhar mascarado com um sorriso por detrás de uns óculos redondos (mas não posso, sequer, garantir como era a armação). A Sarinha era amiga de alguns dos meus amigos e eu devo ter tido algumas conversas com ela, mas não me consigo recordar do teor de nenhuma delas. Sei que era uma figura por quem sentia real simpatia. (Aqui, talvez tenha que apontar que a Sarinha era efectivamente amiga de amigos meus e não a friend of a friend who desperately wants to become your friend, informação que deve estar para passar na rede social do facebook, mais ou menos nestes termos).
No meu sonho havia uma casa cheia de gente, tudo indicando festa: um bar no sítio onde era a cozinha, uma cabine de DJ, perto da janela dessa mesma cozinha, onde estavam o Hélder e o Ívar, uma banca com livros, muitos livros, no sítio onde era a lareira e onde tantas vezes eu e os meus avós paternos nos sentávamos nos Invernos longos, a ter uma espécie de conversa. Só essa parte da casa e a sala-de-jantar apareciam no meu sonho tal qual eu me lembro deles na infância, o resto da casa, carregada de pessoas estranhas, aparecia desfigurada como foi deixada nos anos mais recentes. Na cozinha, estava eu, muito agitada, nervosa e algo angustiada. A anfitriã desta festa não era eu, era a Sofia. Mas a Sofia estava muito atrasada porque ficara retida em Londres, por causa da neve. A angústia tinha a ver com isso, certamente. Eu sei exactamente porque sonhei o que sonhei e isto não é catarse nenhuma, apetece-me apenas partilhar um sonho, porque é Natal.
Não sei exactamente do que se tratava, mas algo tinha que ser apresentado e faltavam soluções e, acima de tudo, faltava a Sofia. No exacto momento em que a minha angústia crescia até ao limite, aparece a Sarinha com um grou bebé na mão. Eu não sei se o mais inesperado do meu sonho é o facto de ter sido a Sarinha a aparecer ou o facto de ela ter aparecido com um grou entre mãos, mas esse quadro fez-me muito bem naquela conjuntura. (mais tarde, percebi por que se tratava de um grou e não de um pintainho, mas essa parte não vou revelar, mesmo sendo Natal).
A aparição da Sarinha, tornou-me de imediato célere e produtiva e foi aí que comecei a perceber que essa parte da cozinha estava cheia de amigos: o Alberto e o Hugo estavam em frente ao balcão, o Alberto conversava com o Kosta e convencia-o com alguma facilidade de que, sim, era permitido fumar ali; o Hugo observava com a calma introspectiva de há dez anos os tiques e trejeitos das pessoas à sua volta e tentava ler-lhes as conversas pelos lábios. Ao lado deles, estava o Pedro, a pentear com os dedos os cabelos loiros e a sumir-se para o interior de uma música, enquanto numa espécie de pista improvisada se desenhavam alguns movimentos. O Nuno, a Andreia e a Luísa enchiam o centro dessa pista, em movimentos desencontrados. O Pedro, o outro Pedro parecia incansável a fazer com que tudo corresse bem( o Pedro faz sempre bem!). Na cozinha parecia noite, mas atravessando a sala de jantar e o salão de visitas, chegava-se à varanda e o sol brilhava. Era aí que em cima de uma manta se reunia a trupe alemã: Hannes, Raukia e Daniel aparecem visíveis, há outras pessoas de costas para mim ou de perfil, mas não consigo ver-lhes o rosto ou sentir-lhes a presença. Alguns rostos estão perfeitamente desenhados e parecem reais, mas eu juro nunca os ter visto. Quando passo por aí, é com pressa, seguida de perto pela Sarinha e pelo grou. Ao fundo das escadas, vejo a Christiane de costas, a fumar um cigarro; e, arregaçando as mangas para um abraço, aproxima-se a Sílvia. O abraço não acontece. Tenho uma pressa absurda! Vamos a casa buscar algo para resolver problemas.
Casa, o lugar, onde sempre vou buscar o que importa.
Não sei o que é, mas o meu pai dá-nos a solução para o problema. Voltamos as duas, a correr, mas começa a chover torrencialmente e o caminho fica cheio de pequenas poças… numa dessas poças enlameadas, a Sarinha cai e transforma-se em sapo. Um clássico. Era quase meia-noite. A minha angústia do início do sonho, volta. Um carro aproxima-se de nós a alta velocidade (conheço aquela curva, chama-se "pé da má"), ainda vejo a Sofia ao volante, mas, de súbito, alguém se move na cama ao meu lado, uma luz acende-se, eu acordo e o meu primeiro impulso é voltar ao sonho e devolver a forma humana à Sarinha. Não consigo dormir durante muito tempo. Eventualmente adormeci e sei que sonhei, mas não me lembro se acabei este sonho ou se comecei outro. Não me lembro. Foi só um sonho, vale o que vale. É como a vida ou como um amigo, ou até mesmo um amigo de um amigo: inestimáveis.
Se alguém vir a Sarinha diga-lhe, por favor, que embora não faça parte da minha lista de amigos virtuais, ainda cabe nos meus sonhos. E já agora, um bom Natal para ela e, por exemplo, para a minha mãe, que à semelhança de outras pessoas que muito estimo, não me apareceu neste sonho, nem na lista de amigos do facebook! Sinal de que os sonhos são de cada um e só cada um manda neles. Boas festas e bons sonhos!
sábado, 5 de dezembro de 2009
Olhá bulha!
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Remodelação arquitectónica nos Alpes suíços
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
Revisão recente a um amor fracassado
Nos dias em que não sinto dores no tornozelo
Lembro-me daquele rapaz e da minha mocidade
E de tantos momento para mim de zelo
E, para a minha mãe, pura leviandade!
Nos dias em que a artrose não me ataca
E me leva à cama ou me põe numa maca
É que me lembro daquele mancebo
De mãos ásperas e braços fortes
A medir-me as ancas, a gabar-me o porte
A tirar-me da cara o palminho que deus me deu
E a pôr-me no corpo, outro palminho bem seu.
Só nos dias em que a vesícula parece rebentar
É que me vem à cabeça aquele peito de pedra
Aquele moço de vigor e de saúde que medra
Aquele cortejar, adocicando-me a bílis
Uma espécie de selo que me dava forma
Um ex-líbris que o passado adorna
E foi antes, muito antes
Do reumatismo, das artroses ou das vesículas biliares
Que um dia o vi a ir pelos ares.
Lembro-me bem de como fugia
Qual acrofóbico a subir para as nuvens
De olhos fechados e sem se voltar
Segurando a mão de outra, todo contente
E eu feita em lágrimas e espasmos de dor
Néscia na vida, ignorando o amor
Julgava o corpo apenas doente.
Enrolando dias, desfiando histórias
A vida cresceu como um novelo
E num baile de boas e más memórias
Voltam-me as dores no tornozelo
Ocorre-me isto (e não é que goste):
Partir corações e andar de avião
Sempre se fez por meio tostão
Que fará agora, com tanta Low Cost!...
Poema rima com edema
Era domingo e abri o jornal
Procurei notícias
acto contínuo, nada cuidado
Pouco é tratado em Portugal.
Títulos amarelos a imitarem o sol
Alimentam-me a vista com colesterol
De página para página o corpo transforma-se
O peso não muda (vive na inércia)
É mesmo a massa de suposta constância
que altera a matéria em abundância.
Revolvo as páginas quase à porfia
A ver o que muda de dia p’ra dia
A lei não existe, o direito é marreco
A ignorância grassa de beco p’ra beco
A páginas tantas, lê-se uma prece
A este país que ainda amanhece
Mas logo um céptico ilude a matéria
E diz que se trata de doença venérea
O contágio alastra de forma imparável
E o céptico tem uma ideia que diz formidável:
Propõe um concurso de textos sem temas
e um mau discurso, cheio de edemas
Incho de ideias que não sei explicar
Arde-me a testa, tremem-me as mãos
E não consigo parar de rimar
Fecho o jornal, amarfanho o céptico
Meto à boca um antipirético.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Feliz aniversário, Vítor!
Faz hoje 40 anos.
É o que me dizem. Sei que não se trata de um boato, porque quem mo diz é a minha mãe, e entre nós não há espaço para rumores: tudo é directo como a descendência.
Há 40 anos (contou-me ainda há pouco a minha mãe) a eira estava tão cheia de milho como ela estava cheia de vida. A eira e o ventre de minha mãe tinham a missão de se esvaziar porque estava marcado nas nuvens que, a seguir, choveria. E a seguir, choveu.
São três acontecimentos desse dia 29 de Outubro de 1969 que estão bem presentes na memória da minha mãe (quando ela os enumera eu vejo a sucessão de imagens, como no cinema, e penso, com agravo, que não consigo ordenar o meu dia de ontem): o canastro encheu-se de espigas secas, a chuva caiu, como em tantos outros dias de Outono, e o meu irmão nasceu.
Há 40 anos eu sabia tanto como aquilo que se sabia de mim: nada.
Um ano depois, acendeu-se uma vela por cima de um bolo de laranja, o meu irmão de um ano soprou-lhe, empurrado pela minha irmã de quase dois anos.
(Na altura ser irmão e irmã era querer ter o mesmo espaço).
Não sei se havia espigas na eira, nem se choveu nesse dia, mas no ventre de minha mãe havia a esperança de outro irmão para os meus dois irmãos.
Há 39 anos eu esperava tanto como aquilo que se esperava de mim:nada.
Dois anos depois, suponho eu que, se entre a troca de fraldas, as colheradas de papa levadas a bocas alternadas dos três irmãos, a minha mãe teve tempo para cozinhar um bolo de laranja, os dois rapazes devem ter soprado às velas do bolo a uma só vez, vigiados de trás pela mana mais velha. Consigo imaginar que, neste quadro que câmara alguma registou, estes irmãos já percebiam que se tinham uns aos outros e que o mesmo espaço chegava para todos.
Há 38 anos eu tinha tanto como aquilo que se tinha de mim: nada.
Três anos depois (continuo a supor), a minha mãe acordou e olhou-se ao espelho. Estava magra e cansada, mas sorria, como a vida lhe ensinou que se fazia. Sorria como nunca desaprendeu. Sorria como ficou registado numa foto a preto e branco tirada uns tempos mais tarde. Sorria como a vejo fazer todos os dias (mesmo nos dias em que me esqueço de olhar para ela).
Nesse dia, ela e o meu pai saíram para o campo. (Devia ser mesmo muito cedo! Ainda as crianças não se ouviam).
Há 37 anos eu sentia tanto quanto o que se sentia por mim: nada.
Quatro anos mais tarde, a minha mãe era finalmente minha, o meu pai era finalmente meu, a minha irmã mais velha era a minha irmã mais velha, o meu irmão do meio era o meu irmão do meio e o meu irmão mais velho, olhava para mim entre quatro velas mal amanhadas em cima do bolo de laranja que a minha avó tinha preparado, minutos antes de me puxar para a luz.
Há 36 anos eu já era alguém, mas não tinha nome.
Por muito que tente meter o nariz nesse momento (que a minha mãe me descreve a rebentar de orgulho) das espigas que recolhia da eira para o canastro, no dia em que o meu irmão nasceu sem enfermeira, sem parteira e quase sem esforço, é-me impossível senti-lo. Mas deste outro dia em que eu já era alguém e todos pensavam que eu ainda não tinha nome, sei que, ao soprar as velas do bolo, sem ninguém o notar, o meu irmão mais velho fechou os olhos, encolheu os ombros e muito baixinho suspirou isto: raio de coincidência! Três dias mais tarde, mudaram-me o nome.
Faz hoje 40 anos não se sabia que esta coincidência se daria. Faz hoje 40 anos ninguém na minha família sabia o que isso era.
Foi exactamente há 36 anos que eu comecei a coincidir com a vida, onde muita gente já estava. Por uma feliz coincidência (e algum engenho dos nossos pais) também já cá estava o Vítor.