Quando a vi pela primeira vez devia ter 10 ou 11 anos, lembro-me de várias coisas surpreendentes. Primeiro surpreendeu-me o facto de ela existir, porque só lhe conhecia o nome, escrito na primeira página do único dicionário que existiu (e ainda existe) lá em casa, enquanto eu e os meus irmãos frequentávamos as várias etapas escolares; e uma fotografia a preto e branco, onde ela parecia (para além de muito bonita) muito alta. A primeira vez que eu vi a tia Elvira foi também a primeira vez que vi as filhas dela, as minhas primas brasileiras, e a questão da estatura de toda a família foi uma decepção para mim, porque eu achava que todas as pessoas do Brasil eram altas, como estava habituada a ver nas novelas da Globo. Mas afinal, as minhas primas, que já eram quase adultas, eram mais ou menos da minha altura. Por outro lado, também a fotografia que eu conhecia da minha tia Elvira alta não correspondia em nada à verdade.
Quando ouvi a tia Elvira falar com as mesmas palavras da minha avó, mas com um sotaque brasileiro, custou-me a perceber as suas raízes, mas depois, fui ouvindo como ela falava e movia as mãos com unhas pintadas de branco (até aí eu só tinha visto unhas pintadas de vermelho ou unhas por pintar, ou unhas pintadas de preto - nas novelas da Globo, porque a televisão só tinha duas cores), e como ela pedia ao meu pai que contasse aquelas histórias, que eu já conhecia de ouvir muitas vezes o meu avô contar, e fui-me deliciando com o seu jeito único e genuíno de se pôr em gargalhadas até às lágrimas com o que o meu pai ia contando. E os dois riam muito e faziam-me rir também. Ao contrário do que se passa com os filhos das outras pessoas, que detestam ouvir contar sempre as mesmas passagens familiares, eu ainda hoje me fascino com essa repetição. A tia Elvira também. Via-se bem que ela também gostava de ouvir as histórias que todos conhecíamos. Via-se bem que ela era uma pessoa especial só pela forma como se punha a ouvir. Via-se que gostava de ouvir os outros e essa é uma qualidade suprema num ser humano.
Ando há meses com a ideia fixa de lhe enviar um livro, porque sei que ela fazia nisso muito gosto, quanto mais não fosse para mostrar às amigas o livro da sobrinha escritora. Eu sei que ela é vaidosa disso, porque ela mo disse, mas também sei que, como boa ouvinte que é, também se poria a ler o livro em voz alta, à espera de soltar aquela gargalhada tão só sua. Mas com ou sem justificação, a verdade é que ainda não lho enviei e disseram-me, entretanto, que ela estava para mudar de casa. Que há muito se preparava para mudar de casa, sem vontade.
Ontem, quando o meu irmão do meio me ligou para me dizer que a tia Elvira tinha morrido, eu já sabia que ele me ia dizer que a tia Elvira tinha morrido, mas nem por isso fiquei menos triste. A morte é assim: certa e triste. E se for mais do que isso, a mim não me interessa saber. Acho que à tia Elvira nem isso lhe interessava, porque a tia Elvira adorava viver e experienciar as coisas da vida. Passei a noite em claro, projectando imagens do seu sorriso e escutando o som da sua gargalhada de menina encantada. E no meio da tristeza e algumas lágrimas, acho que adormeci com um sorriso. Quando acordei muito cansada e muito ensonada para ir trabalhar, ouvi-me dizer isto:
- Bom dia, tia Elvira!
E parece-me que a ouvi responder "bom dia" sem sotaque.
Da próxima vez, talvez lhe peça a direcção para lhe enviar um livro com dedicatória. Ficarei atenta, como sei que ela nunca deixou de estar.
Bom dia, tia, bom dia!
Aqui estou para comentar tudo que minha prima portuguesa,escritora e principalmete adorada por todos nós escreveu da tia Elvira, minha mãe. Meu coração bateu muito forte e ás lágrimas foram inevitavéis por tamanha real descrição.Sim Gena, a morte é certa e triste,mas o amor e carinho que passamos a enchergar quando ela passa, levando alguém que amamos tanto nos deixa sentimentos de força, de fé, de busca, compreensão e lembranças boas, muito boas que ficam pra sempre.
ResponderEliminarBeijos e obrigada, amei, voce arrasou.
Sim, ouvir é uma qualidade inestimável. Só devíamos ser autorizados a falar depois de aprendermos a ouvir.
ResponderEliminarNão lamentas não teres enviado o livro à tua Tia Elvira? Isto, como muitas outras coisas, faz-me sempre pensar no quanto importante é aproveitarmos o tempo.
Eu também tive uma Tia Elvira. Era de Paredes de Coura. Por sermos minhotos, chamávamos-lhe Tia Bi.
Dora, a memória é das qualidades humanas, a que mais estimo. Se nunca a perder, nunca me perco e nunca perco os que amo.
ResponderEliminarPedro, sim lamento. E nós chamavamos-lhe "Birinha", que devia ser com "v", mas... nós somos do Minho:)