segunda-feira, 6 de julho de 2009

A rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas

Viver num país estrangeiro, ainda que mantendo uma saudável carapaça sobre a cultura de arremesso (passo a figura olímpica desportiva) dá-nos muitas vezes a sensação do rato que procura o queijo num labirinto sem fim. A língua é, sem dúvida, a principal motivadora dessa estranheza e, para mim, o estímulo maior para saborear o queijo.

Uma das minhas gafes favoritas de uma amiga que está a aprender português é a confusão entre os adjectivos “perigosa” e “preguiçosa”, passa a vida a dizer que é perigosa para aprender português, quando o que quer dizer é que é preguiçosa. Eu acho que esta gafe representa um quase proverbial acto falhado, considerando que na realidade é um perigo comunicar-se numa língua que não conhecemos bem. De entre os meus incontáveis “perigos” linguísticos em alemão, há um que me há-de dar a alongada alcunha de “a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas”, porque até hoje nunca consegui distinguir (e também já perdi as esperanças de o fazer) entre as palavras “Kirche” (igreja) e “Kirsche” (cereja). Passei um fim-de-semana na Saxónia no extremo Leste da Alemanha, um pedaço de terra maravilhoso, que por esta altura está cheio de cerejas, e parece-me que à conta disso, toda a gente com quem me cruzei ficou a achar que eu sou uma fanática religiosa com vontade expressa de orar ao senhor a cada dez minutos. Ninguém percebeu que as cerejas são a minha verdadeira perdição e eu também não consegui explicar-me.

Mas, à parte desta questão da língua, há, naturalmente, outros motivos para o labirinto se adensar. Não vou fazer esculturas a estereótipos culturais, até porque com esses vivo eu bem sem me perder. Queria só falar de um fenómeno relativamente recente, mas já completamente instalado num refrescante conceito de mobilidade em toda a Europa e especialmente bem recebido na Alemanha que é facultado, a baixo custo, pela “mitfahrgelegenheit”, que é como quem diz: “boleia partilhada”.

Pois é, a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas achou possível aderir a este conceito moderno de transporte, de ânimo leve, deixando para trás a desconfiança do bom português, que em relação a grandes inovações ostenta sempre um retrógrado balão de pensamento, onde se lê: “nunca fiando, nunca fiando”. Sem confiar, mas já instalada no primeiro carro com mais quatro pessoas estranhas entre si, a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas fez a viagem entre Berlim e Bautzen sem nada a assinalar, tirando o facto de a música do condutor ser de um perigoso mau gosto, que num momento ou outro parecia fazer estalar os vidros e ameaçava rebentar com a escala de decibéis. Incomodou, provocou dor de cabeça, mas o alívio de chegar a qualquer lado sã e salva, tudo vence. Tudo ou quase tudo. É que, na viagem de volta, a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas sentiu vontade, como qualquer católico que se preze, de rezar dentro de igrejas e até lhe ocorreu que em casa ficara um terço com a inscrição “em Fátima rezei por ti” e desejou ter esse objecto para, pelo menos, o fechar dentro de mãos e esconder o seu medo entre as contas.

Uma viagem de aproximadamente 400km foi feita em menos de 2 horas e a rapariga que comia igrejas e rezava dentro de frutas tinha medo de coisas velozes, mas não disse a ninguém. Aguentou o pavor estrada fora, onde a velocidade não tem limites, aguentou a música de perigoso mau gosto (a qual, percebe-se, depois, está sintomaticamente associada à velocidade e a outras situações limite) e chegou a Berlim mais cansada do que se tivesse levado o triplo do tempo para fazer a viagem. Não disse nada porque seria perigoso confundir as palavras “langsam” e “schnell”, mentiu-se em pensamento a rapariga que, ao chegar a casa, só pensava no sabor da cereja.

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