Não se deixem arrebatar pelo título, isto não é uma história de super-heróis.
Pode ser antes uma actividade alternativa para os arrumadores de carros, ou para aquelas pessoas que insistem em lavar o pára-brisas do carro, quando o semáforo está vermelho e que invariavelmente o deixam mais sujo do que estava, ou para as mães tristes que seguram numa mão um cartão amarelado a dizer que o filho, que trazem na outra mão, sofre de uma doença incurável e sequer tem o que comer, ou para os outros que simplesmente estendem uma mão à moeda, enquanto o resto do corpo parece adormecido debaixo do rosto caído.
Eu explico: “Flasche” é a palavra alemã para “garrafa” e “people”, penso que é já uma dessas palavras inglesas que não precisa de tradução, mas que numa atitude de esclarecimento exacerbado, eu traduzo aqui por “pessoas”. Equivale isto a dizer, que o meu título quer significar (embora muitos linguistas possam insurgir-se contra a atitude insolente e inconveniente de inventar e acrescentar léxico, coisa já de si extensíssima e cansativa), “ as pessoas-garrafa”.
O homem, a mulher ou a criança-garrafa são uma das figuras mais típicas de Berlim. Estão por todo o lado e têm uma actividade incansável, especialmente produtiva nos domingos de churrasco no parque, ou nas imensas manifestações culturais de rua, que vão desde a Love Parade (parece-me que esta deixou de se realizar, mas fica como exemplo), onde se consomem hectolitros de cerveja e aí uns 20 litros de água, ao Carnaval das Culturas, onde os mesmos hectolitros de cerveja são consumidos, mas devido às inúmeras advertências à importância do consumo de água (e porque supostamente no carnaval é obrigatório dançar), a soma de 20 litros aumenta exponencialmente, fixando-se aí nos… 24,5 litros, digamos. Se tivermos em consideração que o Carnaval das Culturas teve números de visitantes e participantes que ascenderam aos 700.000, o que eu quero, obviamente, deixar aqui frisado é que discordo completamente dessa teoria universal de que os alemães bebem muita cerveja. Parece-me óbvio pelo assinalado, que o que eu acho é que eles bebem muito pouca água e isso intriga-me.
Mas esta coisa que a mim apenas intriga deve preocupar e irritar bastante um homem, mulher ou criança-garrafa. É que as garrafas de cerveja são normalmente de vidro e mais pesadas do que as normais garrafas de plástico, esse recipiente de ouro para um bom “flashman”, mas a questão do peso físico será coisa de somenos para estes trabalhadores independentes e livres. O que, de facto, é importante notar é que o retorno recebido por cada garrafa de vidro entregue é de € 0,08, enquanto que o depósito de uma garrafa de plástico é de cerca de €0,25. Eu não sou pessoa de contas e até posso estar errada, mas parece-me isto uma actividade absolutamente rentável e um belo complemento ou até um substituto aprazível do “Hartz IV”, que é o nome que eles dão ao rendimento mínimo, eliminando assim de uma assentada o mau gosto de usar as palavras “rendimento” e “mínimo” e, melhor do que isso, a conjugação vergonhosa das duas.
Não se pense, no entanto, que isto seja uma actividade que não requer o seu conhecimento e a sua sabedoria empírica, aliás, tenho suspeitas de que haverá, num futuro próximo, quem se ponha a defender teses de mestrados e de doutoramentos sobre o assunto. A mim maravilha-me deveras que eles consigam discernir a dez metros de distância do objecto, se ele é um insignificante invólucro de tara perdida ou se assinala fabulosos cêntimos do euro à espera de serem recolhidos.
Ontem, por exemplo, estava no parque e o incessante trânsito destas figuras em redor de mim e do meu grupo começou a ser perturbador. Eles até sofrem de um certo estigma de delicadeza: inclinam o tronco, como se fizessem uma vénia, esticam o indicador, quando a artrose assim lhos permite, e perguntam qualquer coisa, invariavelmente imperceptível, a que um ausente grupo de gente responde “ja”, sem se reterem mais tempo nos gestos que fecham o ritual. Eu, na qualidade de portadora da única garrafa de plástico do grupo, senti-me por várias vezes observada e iria jurar que até houve quem fizesse um compasso de espera, até que eu esvaziasse de vez a garrafa, mas a nenhum deles valeu de muito essa atitude vigilante.
Ao cair da noite, quando saímos do parque, havia ainda uma roda de garrafas de vinho vazias (provavelmente as garrafas que contiveram o melhor e mais caro líquido da tarde), que eu tratei de levar para o contentor. Essas não interessavam obviamente a mais ninguém. A minha garrafa de plástico vazia chegou até casa, dentro da minha mochila, lugar de onde só sai para se encher com mais água da torneira.
Neste momento, juntamente com um saco azul de lixo orgânico (único saco azul que até hoje possuí, assinale-se), esperam-me na cozinha dois caixotes com cerca de 20 garrafas de vidro e 3 ou 4 de plástico (e isto não quer dizer que eu me tenha tornado tão alemã, que beba pouca água, pois como já referi, o meu depósito de água é público e mais ou menos gratuito). Mas, parva que sou, ainda não aprendi a separar a tara perdida das outras… Acho que vou ter que fazer muitos estágios com”flaschepeople” nos parques, mas por agora, vou ali ao “Kaisers” trocar garrafas por pão.
Eugénia filha não te vás da Alemanha que esta terra só te faz bem à inspiração... da próxima vez que me deparar com uma destas flachepeople, assim como que uma argola de jade que se atravessa pelo caminho como quem não quer a coisa à procura da sua garrafinha com retorno (e olha que por aqui na nova colónia há muitas), acho que me vou desmanchar a rir até que se parta o coco.
ResponderEliminarlove it!
Pedro