Baseada nas premissas de que tudo quanto dizemos e escrevemos tem um fundo incontornável de inspiração real e outro tanto de aspiração à realidade, e supondo que tudo o resto é ficção, atrevo-me então a supor um dia na vida da escritora supostamente menos lida de um suposto país do sul da Europa (chamemos-lhe Portugal), actualmente residente no país supostamente mais rico da Europa (chamemos-lhe Alemanha) e que hoje às horas a que escreve já teve um dia razoável de trabalho braçal.
Vamos supor que a escritora supostamente menos lida de Portugal trabalha no serviço de quartos de um hotel e que hoje já desfez e fez cerca de 20 camas, limpou o pó aos móveis de 10 quartos, lavou banheiras e sanitas e aspirou quantidades incontáveis do pó da alcatifa mais feia de que tem memória. Vamos supor que a escritora levou 6 horas e 45 minutos para realizar essas tarefas e que a entidade empregadora do país supostamente mais rico da Europa resolve pagar-lhe apenas 3 horas de trabalho. Neste caso, tanto importa dizer que cada hora é paga a 2 como a 20 euros, pois o que importa para isto da vida é a contagem do tempo e o da escritora supostamente menos lida de Portugal está a ser mal contado.
A escritora supostamente menos lida de Portugal assistiu e cooperou durante duas semanas (abusivamente bem contadas) com este esquema de exploração de uma classe, que numa atitude de compreensível autofagia se parece a si própria demitir do conceito de classe e que até se encolhe perante o conceito de humanidade.
Vamos supor que este serviço é diariamente realizado por 6 pessoas e que todas se confrontam com a mesma realidade diária. Dessas 6 pessoas, para além da escritora supostamente menos lida de Portugal, que como facilmente se adivinha, é portuguesa, há também o rapaz dos olhos extraordinariamente bonitos estragados pela conjuntivite, que é palestiniano e que até há dois anos morou junto à Faixa de Gaza; a rapariga mãos de Hanne, que inventa intervalos para devorar cigarros e que é marroquina de Rabat; a turca não se sabe de onde porque já mora na capital do país supostamente mais rico da Europa vai para 20 anos e continua a comunicar, apenas, num turco sofrível, como diria a turca número dois (se conhecesse o conceito de sofrível), que é a sub-gerente desta gente toda; e por último, vamos supor que haveria uma alemã, oriunda não do país supostamente mais rico da Europa, mas da outra Alemanha, que não é esta, é uma que vive intensamente esmagada na memória de quem sabe que isso de ser o país supostamente mais rico da Europa, a ser verdade, não tem interesse nenhum para quem diariamente paga o leite e o pão com o depósito das garrafas vazias que os outros não querem.
Vamos supor que estas pessoas, onde se inclui a escritora supostamente menos lida de Portugal, vivem numa “realidade paralela”. Teremos então que supor que existe outra realidade, que a si própria se pode auto-denominar de “realidade paralela”. No tocante a isto, o que a escritora supostamente menos lida de Portugal tem dificuldades em perceber é se estas duas realidades sabem uma da outra ou se mandam dizer por uma terceira realidade.
Vamos supor que a escritora supostamente menos lida de Portugal deixa de ser a escritora menos lida de Portugal para ser uma escritora lida assim e assim em Portugal, mas continua a ser a escritora menos lida na Alemanha. Poderá, então, uma tal escritora fazer parte, em simultâneo, das duas realidades paralelas e de uma terceira (aquela que manda dizer, a realidade dos recados ao povo e ao poder)? Ou terá ela simplesmente que inventar uma terceira realidade, onde ininterruptamente esprema palavras para uma espécie de sebenta, que ninguém abre, porque será sempre sabido que essa é a sebenta da empregada de limpeza de um hotel qualquer do eixo Ocidente/Leste da capital do país supostamente mais rico da Europa.
Vamos supor que tudo isto não passam de suposições. Vamos supor que já todos vislumbramos o lugar aonde queremos chegar. E deixemo-nos estar, a ver a paisagem vazia de nenhures.
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