O mais
complexo jogo de mentira e verdade joga-se em palco. Em nenhum outro lugar a
verdade é tão escrutinada. Em nenhum outro lugar se sentem tão curtas as pernas
da mentira, do contrariar o sentir, que é o que define a mentira, no fundo.
Em nenhuma outra situação a realidade é tão
cruel, porque é o actor que a impõe a si próprio e com ela vive por momentos
únicos, mesmo que isso contrarie toda a sua natureza. Para ser verdadeiramente
livre na representação, o actor deve autocorrigir-se, mas deixar de lado a
autocensura – tarefa quase sempre complicada, porque a censura faz parte do
trabalho do actor. Daí que um actor que se
autodirige só pode ter tiques de
fascista. Esse trabalho censório, ou de limpeza, se preferirmos assim, é feito
pelo olhar do encenador (externo ao acto de representar em si, mas não aos seus
sentidos). O encenador é o único responsável pela administração da razão. O
actor não pode nem deve ser razoável. É uma tremenda luta interna, mas acima de
tudo, em palco procuro perder a razão, deixar-me levar.
Era isto que
vos queria dizer: o triunfo de um actor é nunca achar-se sozinho. Nem no seu
sentir, nem na verbosidade. O estar em palco, ainda que num monólogo, como é o
caso aqui, é a reunião mais absoluta de humanidade. O actor não deve nem pode
distrair-se de si nem do público, mas se o público se distrai de si e do actor,
o actor fracassa. Aqui reside a maior crueldade da representação: é no fracasso
que o actor fica sozinho, precisamente quando mais precisava de alguém.
Penso nisto
porque me têm confrontado com o suposto acto de coragem de me fazer a um monólogo. Ainda para mais, este monólogo! Não
considerava que isto fosse um acto de coragem e, em si só, não o é. O
enquadramento que faço da coragem é outro: ter coragem é criar relações e
mantê-las. Ter coragem é abdicarmos de nós. Ter coragem é cuidar. Ter coragem
não é falar, é saber escolher os momentos para se dizer. Ter coragem é saber
falhar. Ter coragem é ser contraditório e assumir as contradições. Isto digo eu
de mim para mim e, no fim de todas estas assumpções, concluo que tudo isto se
congrega em palco.
Sei bem que um
monólogo não admite falhas e, então, aqui, a minha noção de coragem é mais
abrangente em palco do que fora dele. Eu, no entanto, não sou corajosa: tenho
apenas uma dose excessiva de loucura: representar é o modo mais eficaz de repor
os índices de lucidez. Contraditório?! – Talvez. Há que viver com isso.
Sem comentários:
Enviar um comentário