terça-feira, 10 de junho de 2014

A propósito do trabalho em "a voz humana"...

O mais complexo jogo de mentira e verdade joga-se em palco. Em nenhum outro lugar a verdade é tão escrutinada. Em nenhum outro lugar se sentem tão curtas as pernas da mentira, do contrariar o sentir, que é o que define a mentira, no fundo.
 Em nenhuma outra situação a realidade é tão cruel, porque é o actor que a impõe a si próprio e com ela vive por momentos únicos, mesmo que isso contrarie toda a sua natureza. Para ser verdadeiramente livre na representação, o actor deve autocorrigir-se, mas deixar de lado a autocensura – tarefa quase sempre complicada, porque a censura faz parte do trabalho do actor. Daí que um actor que se
autodirige só pode ter tiques de fascista. Esse trabalho censório, ou de limpeza, se preferirmos assim, é feito pelo olhar do encenador (externo ao acto de representar em si, mas não aos seus sentidos). O encenador é o único responsável pela administração da razão. O actor não pode nem deve ser razoável. É uma tremenda luta interna, mas acima de tudo, em palco procuro perder a razão, deixar-me levar.
Era isto que vos queria dizer: o triunfo de um actor é nunca achar-se sozinho. Nem no seu sentir, nem na verbosidade. O estar em palco, ainda que num monólogo, como é o caso aqui, é a reunião mais absoluta de humanidade. O actor não deve nem pode distrair-se de si nem do público, mas se o público se distrai de si e do actor, o actor fracassa. Aqui reside a maior crueldade da representação: é no fracasso que o actor fica sozinho, precisamente quando mais precisava de alguém.
Penso nisto porque me têm confrontado com o suposto acto de coragem de me fazer a um monólogo. Ainda para mais, este monólogo! Não considerava que isto fosse um acto de coragem e, em si só, não o é. O enquadramento que faço da coragem é outro: ter coragem é criar relações e mantê-las. Ter coragem é abdicarmos de nós. Ter coragem é cuidar. Ter coragem não é falar, é saber escolher os momentos para se dizer. Ter coragem é saber falhar. Ter coragem é ser contraditório e assumir as contradições. Isto digo eu de mim para mim e, no fim de todas estas assumpções, concluo que tudo isto se congrega em palco.

Sei bem que um monólogo não admite falhas e, então, aqui, a minha noção de coragem é mais abrangente em palco do que fora dele. Eu, no entanto, não sou corajosa: tenho apenas uma dose excessiva de loucura: representar é o modo mais eficaz de repor os índices de lucidez. Contraditório?! – Talvez. Há que viver com isso.

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