Regresso, hoje, à minha casa-infância. Faço-o sempre que a vida me atropela a exactidão dos dias e dos sentidos. Sempre que me perco na errância das coisas que não são minhas. Sempre que o calendário interna, na Primavera, a palavra domingo, a palavra Páscoa.
É domingo na minha memória. Um intenso domingo de Páscoa da minha infância.
Visto-me de branco e ponho flores no cabelo. A minha mãe sorri mais do que nos outros dias. Os móveis da casa envaidecem-se com naperons e doces. O meu pai alinha as gravatas sobre a cama e escolhe sempre a mesma. A minha mãe continua a sorrir. O senhor abade mostra-me o significado da palavra “elegância”, sentado na burra do Zé da Mata (que afinal era uma linda égua). O senhor abade ensina-me o significado da palavra “beleza” – não conheço ninguém tão velho como ele, ninguém que sorria tanto como ele (nem a minha mãe num domingo de Páscoa), ninguém que me segure o queixo com mãos tão delicadas, ninguém que ponha no rosto cansado um tamanho lençol de beleza. O senhor abade cheira a hóstias. Todas as casas cheiram a hóstias no domingo de Páscoa, dizem-me que é a naftalina, mas eu não acredito. Para mim, todas as casas cheiram a hóstias, no domingo de Páscoa e há algumas que cheiram a hóstias o ano todo. Há flores amarelas nos valados e outras brancas, que eram para ser lírios, mas não cresceram tudo. As flores cheiram a flores pequeninas, quando se misturam, à entrada das casas, com mostrastes. As crianças correm a encher as casas dos vizinhos, os rebuçados pulam-lhes nas algibeiras e intumescem-lhes as bocas, onde cai a cruz, lavada em perfume de rosas.
Se forem dez horas já me dói a barriga, mas não digo nada. Pelas onze horas, a minha avó percebe. Já posso chorar devagar. As mãos da minha avó hão-de cair-me sobre o ventre inchado e desenhar movimentos circulares, que aliviam tudo, até a sua voz repreensiva. Pelo meio-dia o fogo estala no ar e eu finjo não ter medo, e, a essa hora exacta, o meu avô arrasta para o rosto o que a memória lhe garante ser um sorriso. O soalho estremece debaixo dos pés irrequietos da pequenada e um dos pratos da baixela nova de há 40 anos, estala pela quadragésima vez, mas não parte.
Estamos todos à mesa da minha infância. A mesa a que regresso sempre. A mesa que nunca abandonei. É domingo de Páscoa na minha memória, a memória que nunca me abandonou e que conserva todos os que amo. Que conserva tudo o que sou.
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