Abria os olhos e via que lhe aconteciam coisas extraordinárias por esses dias. Via que era Primavera e que o sol brilhava e afagava as árvores e as flores, tanto nos canteiros de uma casa feliz, como nas avenidas de uma cidade cinzenta. Via pessoas a passarem ao seu lado na rua e sabia que tanto iam alegres como tristes, tanto caminhavam sabendo que caminhavam, como levitavam, aparentando simplesmente caminhar. Via gente que passava e gente que olhava. Gente que parava, por vezes, fincando as mãos em ombros ou noutras mãos. Lágrimas nas mãos de amantes que se despediam, ou o sorriso do homem que plastificava documentos, no cimo de uma avenida.
Tudo isto lhe parecia extraordinário.
Via que o sorriso do funcionário das finanças estava a crédito no dentista e que a colega dele há muito que esqueceu a cor do seu cabelo. Via os ombros resignados dos funcionários noutra repartição pública, e sabia que o tempo que ia ali gastar tinha que lhe chegar, e, de facto, verificava que quando esse tempo acabava lhe tinha chegado. Via que o tempo lhe era sempre útil. E já não parecia que o gastava, como ao dinheiro. Via que essa ligação do tempo ao dinheiro é responsável pelo declínio das coisas humanas. Pelo menos das coisas humanas que lhe interessam a ela, e
Fechava os olhos e via que lhe aconteciam coisas extraordinárias nesses dias. Via que caminhava em direcção ao centro da vida, tanto pelo ritmo cardíaco acelerado e pela respiração apressada, como pela suavidade desses ritmos. Nesses dias, abrir e fechar os olhos na constância de um sorriso parecia-lhe a única coisa extraordinária de toda a sua existência. E era-o, de facto: não tinha que se sentar e escrever para pensar sobre isso. Não tinha que correr para acompanhar o mais veloz dos pensamentos. Não tinha que sonhar para ter o que queria. Não tinha que nada: Pensar é estar aqui, correr é estar aqui, sonhar é estar aqui. Via isto, enquanto existia. E existir, por esses dias, era uma coisa extraordinária.
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