Olhavam para o sol e viam-no nascer todas as manhãs. Viam como a luz incidia sobre as coisas e as iluminava e pensavam, sempre pensaram, que estava tudo bem, que estavam a ver. Primaveras e Verões sucederam-se com o sol a ser mais do que rei. A ser pai, mãe e alimento, a ser conforto para os pés descalços, a ser o único abraço e o único mimo de crianças muito tristes, que não sabiam ainda que eram tristes, não sabiam ainda sorrir. Crianças que confundiam o gesto de um mimo com o de um bofetão e que se afastavam, que andavam sempre a afastar-se, andavam ao lado umas das outras com medo de se tocarem, andavam ao lado de si mesmas, sem se olharem. Sabiam que havia luz e que isso era bom porque não tropeçavam nas pedras do caminho para a escola, e não sabiam nada sobre essas pedras, não sabiam nada sobre esses pés.
Era Primavera, a seguir vinha o Verão, assim lhes ensinara o mestre-escola. Os dias iam crescendo, enchiam-se de luz e calor e tudo parecia sarar: as chagas dos pés fechavam, a pele enrijecia e ficava mais fresca, a água fria das fontes sabia melhor nos lábios e no resto do corpo, os cabelos andavam mais asseados, as marcas da palmatória cicatrizavam mais rapidamente. Todos pareciam felizes e, caso alguém tivesse a ideia de os questionar sobre isso, todos diriam que sim, que estavam contentes. Nenhum deles teria dúvidas em distinguir o Verão do Inverno, porque todos passavam pelo Verão e pelo Inverno, porque lhes ensinaram as estações do ano e, ao passarem por elas, todos as reconheciam, como reconheceriam a alegria e a liberdade, se lhes tivessem ensinado a alegria e a liberdade. Porque essas são coisas que obedecem a um percurso e há que fazê-lo par o conhecer, para o reconhecer.
Hoje é Primavera e o Verão não tarda. Sei disto, porque alguém me ensinou esses nomes e eu repito-os, tenho-os repetido toda a vida. Tenho repetido as estações e os seus nomes e não me canso. Tenho repetido a palavra amor, tenho conjugado verbos com pessoas, tenho repetido a palavra liberdade. E não me canso. Não me canso de repetir essas palavras e de as percorrer em voltas e rumos diversos: sei que a luz que incide sobre elas no Verão é a mesma que incidirá no Inverno, porque essa luz emana de dentro de mim e, quando sai para iluminar as coisas mais ou menos sensíveis do mundo, sai para me libertar.
Sei da importância da luz tanto e tão bem como eles (os que não distinguiam a luz do sol da luz de um olhar feliz) sabiam. E por isso, não me sai esta ideia da cabeça: se não fossemos um país de tanto sol, se os Invernos fossem ainda mais rigorosos e mais longos, e o sol não aparecesse tanto para encandear olhares e afagar as almas em revolta… Não seríamos livres há mais tempo?
Não queria fazer isto, sei que é um álibi tonto, mas posso (só hoje!) imputar as culpas ao sol? Amanhã, ele brilhará outra vez, para me ensinar coisas abertas sobre a liberdade, para me ensinar que a culpa não existe. E, ao acumular aprendizagens debaixo desta luz quente, sei que nunca me hei-de cansar de ter luz, nunca me hei-de cansar de ser livre e de despertar diariamente neste diálogo:
- Bom dia, gente livre!
- Bom dia, Liberdade!
Sem comentários:
Enviar um comentário