domingo, 3 de janeiro de 2010

um ano depois do arremesso...


Aproximei-me da luz com alguma precisão e deixei o rosto suspenso na lonjura do horizonte.

- Meu amor, o mundo é vasto!

Dizia ele, lavando as mãos eficazmente.

- O mundo é vasto, podes ir!

E eu de rosto contra o horizonte e costas voltadas para a exclusividade da sua presença

- O mundo é vasto

E eu a observar a luz que me fechava os olhos e tornava o mundo menos amplo do que ele sugeria, a reduzir a vastidão do seu mundo ao recorte da janela, à fugaz incidência de luz. E o mundo era raro, nesse instante, raro e fechado. Rareavam as possibilidades e tudo em mim se mascarava de impotência.

Ele a querer dizer “vai-te embora!” com aquela história de o mundo ser vasto. Ele a dizer ”meu amor” pela primeira vez, na vez em que se despedia, a dizer tudo muito metodicamente, como se tivesse previsto a situação há muito tempo, com prazer. Com o prazer de quem não se enganou e se orgulha disso. Ele a adiar a dor para depois, para quando estivesse sozinho e ninguém lhe pudesse testemunhar o rosto perturbado, ninguém lhe pudesse limpar as lágrimas que estavam reservadas para aquele momento específico. Ele quase encantado, a dizer de si para si que sabia, que já sabia que isto se ia dar. E enquanto pensava isso, o mundo parecia-lhe de facto vasto, glorificando ainda mais o mérito das suas previsões. E feliz, de uma felicidade calculada, porque reduzia a dimensão do mundo ao seu circuito restrito e estava-se perfeitamente nas tintas para o tamanho das coisas, para o movimento das pessoas, para os problemas pendentes... para os meus problemas.

O meu problema, de momento, era só conseguir dar-lhe razão. Era urgente que o mundo fosse vasto, era urgente que eu caminhasse desimpedida por esse espaço de estranhezas. Era, sobretudo, necessário não ler as segundas ou exclusivas intenções das suas palavras, nada de subtextos. A verdade que me interessava estava ali, contida naquela frase: o mundo precisava de ser mesmo muito grande e eu só já queria estar enfiada nessa brenha de acasos.

De resto, era aquilo. A nossa história tinha sido até ali e não se vislumbravam possibilidades de a rematar de outra forma.

“Melhor assim”, pensei quando a luz desapareceu. Melhor assim, não ter nada para partilhar e não ter a obrigação de o fazer. Melhor assim. Ter uma porta que só se abre para o sentido do mundo e nunca se chega a fechar, porque não há espaços para fechar e ninguém chega a ser essa reserva escura das nossas memórias passadas. Ainda bem que a luz incide verticalmente sobre a linha da vida e tudo se pode observar às claras, com evidência, sem espaço para as dúvidas ou para a certeza patenteada. É só olhar para o que vivemos como quem observa as águas de um rio sereno e aguenta o olhar até o perder de vista Ainda bem que me mandou embora e me poupou ao sacrifício de ser eu a despedir-me.

- Raios partam, o mundo é vasto!

Refazia ele, já com outro tom, já com outra luz a iluminá-lo

- Raios partam!

Sentando-se na cama, as mãos atapetando o rosto, todo inclinado entre as pernas, o dorso a oscilar, as frases exaustas a atrapalharem-se contra as paredes do quarto, a ecoarem distantes no meu corpo e a noite a aproximar-se clandestinamente.

- Raios partam, raios partam...

O seu soluçar a tornar-se sufocante, o seu corpo todo derrotado e o meu a recompor-se, ganhando ritmos estabilizados. Estendo as mãos que ajudam e confortam, mas só porque ele não vê, não mas vê. Ofereço-lhe as mãos, que ele não vê, para que as não recuse e permaneço de costas voltadas, para que eu própria não siga esse gesto impossível. E dá-me pena senti-lo assim. Não por o ver assim, mas por ainda ali estar, no instante que ele havia reservado só para si, o instante em que se desfaz e ninguém testemunha, e afinal sou eu que analiso a minha própria decomposição na sua vida. Sinto cada uma das minhas partículas a caírem no chão, a minha imagem a estilhaçar-se em cada uma das suas lágrimas. E só quero fugir. Volto-me para sair do quarto e a sua imagem detém-me por mais uns instantes. Os dedos dos pés a movimentarem-se pateticamente, dentro das meias mal escolhidas e rotas.

- Que vais fazer com a tua vida?

Viro o rosto e guardo aquela imagem decadente e pergunto-me o que fará ele com a sua vida, o que conseguirá fazer sozinho, se nem um par de meias é capaz de escolher. E antes de sair porta fora, ainda a pergunta

- Ouves-me, Graça, o que vais fazer?


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