Viagem curta
Sair de casa
começa a ser uma extravagância minha. A última vez que saí, apanhei um comboio
ao fim da manhã, onde, de pé, portadora dos mais recentes dissabores da idade:
as dores na lombar (cruzes canhoto!), segui viagem acompanhada por um belo
livrinho. O comboio estava cheio de gente, jovens essencialmente. Numa viagem
que dura mais do que uma hora, eu era a única pessoa a ler.
Angustiou-me, isto.
Passeio rápido
Fui ver uma
exposição de dinossauros, perfeitamente por acaso. Andava à procura de uma
casa-de-banho e entrei num museu. Vou continuar sem saber dizer os nomes dos
dinossauros, mas fiquei contente por já se encontrarem museus por perfeito acaso. Quando saí, vi um mendigo a
escarafunchar no lixo.
Angustiou-me, aquilo.
O ticket
Fui pagar uma
quantia obscena de propinas a um instituto superior. Quando cheguei à
tesouraria, havia muita gente, mas não havia propriamente uma fila organizada.
Deixei-me ficar por uns instantes, até perceber que algures haveria uma
daquelas geringonças que cospem senhas de atendimento. Perguntei a uma pessoa
ao meu lado (aluno da instituição, certamente) que me respondeu: “yahh, mana,
tens que ir ali ao fundo tirar o ticket.”
Hummm… Não sei
bem o que me fez isto.
Transbordo
Depois de uma
série de peripécias com o funcionamento do metro do Porto, que deve ser o menos
intuitivo do mundo e o mais burguês também (talvez uma característica seja
consequência da outra), lá consegui orientar-me no caminho de volta. Estava à
espera do metro para a Póvoa do Varzim, só porque sim, quando me deparei com os
dois adolescentes do outro lado da linha. Não sou perita em tribos urbanas
(acho este conceito absolutamente estapafúrdio), mas tenho umas luzes sobre
comportamento humano e devo dizer que criaturas daquela idade, que não alinham
uma frase sem perturbar a gramática e que escarram para o chão a cada 20
segundos, não são merecedoras do gozo que estariam a ter a fumar aquela… cena.
Perturba-me, isto!
Viagem de regresso
Todo este dia
foi acompanhado (salvo seja) por Mário de Carvalho, que se fosse um tipo ali do
Porto escreveria comó caralho, assim
escreve “apenas” impressionantemente bem, bela e cronicamente. Adestrou-me todo
o dia e não se esquiva ao rótulo do melhor prosador da língua portuguesa vivo, «isto,
claro, salvo erro ou omissão, melhor opinião e com a devida vénia.»
Agradou-me, isto.
Viagem por decreto
E por Mário de
Carvalho: sei que não foi por decreto que, no preciso ano em que eu nasci, saiu
do país. 40 anos depois, cá estou eu obrigada a fazer o mesmo, pelos motivos que
todos conhecemos sobejamente. Emigro por decreto, portanto, e talvez tão
contrariada como o Mário de Carvalho há 40 anos. Espero regressar em Abril. Levo
sobre ele a vantagem de reconhecer, no calendário, o sinónimo de liberdade. Talvez
preferisse que ela não saísse da rua, nem dos nossos corações nem dos
dicionários, de onde Mário de Carvalho, esse resgatador de vocábulos, a pudesse
recuperar para sempre.
Algo aqui me
preocupa e outro tanto me entristece. Mas ainda espero…
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