quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Poema para Adriana

Adriana é um dia de semana.

Grande coisa para se ser, pensam uns

E por que não será a semana toda, perguntam outros

Já que a pões num poema, dá-lhe o tempo todo

Resmunga o Zé a um canto

Eu, que da Adriana devia apenas pensar o nome

Atrevi-me hoje a escrevê-lo

Como se o nome fosse um dia inteiro

E sei que ao ser um dia inteiro

Adriana parece mais do que se for apenas um dia da semana

Que é o que ela é.

E aqui, aqueles que escarneceram da importância de se ser um dia da semana,

(De se ser Adriana

De se ser um dia à escolha, de domingo a sábado

De se ser e de se ter escolha sobre todo um dia)

Já percebem que o seu escarnecer era incompreensão e inveja

Todos menos um

Que não tem nenhum desses alcances

Nem o da incompreensão

Nem o da inveja

De Adriana

O Zé dá-lhe o tempo todo

Eu posso apenas dar-lhe um poema

Que vale o que vale

Mas é inteiro

Como um dia da semana

Como Adriana.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Conto de Natal # par

A menina cujos lábios eram sombras adormeceu.

Passou-se o tempo, no seu sono, e com o tempo, pessoas, lugares onde foram inscritos factos, e corações se estilhaçaram.

“Um dia, acordarei”, pensou, antes da preparação metódica da hibernação. “Acordarei, quando o sol tiver a força de aquecer os corações”

Passou-se o frio, no seu sono, e com o frio, pessoas deram abraços, lugares onde se reuniram e interceptaram estilhaços, promessas foram cumpridas, outras adiadas.

“Um dia, acordarei”, inscreveu no lugar cimeiro da lista prioritária de sonhos. “Acordarei, sobre a memória vazia da dor”.

Passou-se a dor, no seu sono, e com a dor, foram-se as pessoas, os lugares ermos da sua memória, as cicatrizes de outros órgãos vitais, outrora estilhaçados.

“Um dia, acordarei”, trauteou na melodia mais bela da sua infância. “Acordarei ao som da mais bela música jamais imaginada”.

Passou-se a música, no seu sono, e com a música, pessoas calaram, vozes intumesceram lugares desertos, versos com veneno apagaram os seus sonhos…

A menina cujos lábios eram sombras acordou, finalmente, numa noite fria de Inverno, olhos cerrados sobre incompreensão destas palavras:

It takes two to climb the mountain

Only one to make its way down.

A menina cujos lábios eram sombras quis gritar, quis subir a montanha… mas agora, depois de terminado o seu imperioso sono, deu-se conta de que os seus lábios sombra eram o espelho de outros lábios que a impediam de falar, de gritar, de beijar. E ali, na parte mais funda da montanha, percebeu os versos do seu despertar:

It takes two to climb the mountain

Only one to make its way down.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Coisa verde

Íamos todos quantos fossemos juntos, por esses dias. Muníamo-nos de cestos, baldes ou pequenos sacos de plástico, pás, enxadas, ou tudo o que fosse digno de mostrar serviço. Era a operação de maior responsabilidade de toda a composição do presépio, por isso, havia sempre um adulto por perto - normalmente, era o nosso tio mais cool (palavra e conceito que, à altura, desconhecíamos, mas que agora, coisas bem vistas, define o meu tio mais novo, que usava barba ou bigode de abas ao alto, boina camuflada e tinha uma colecção de cassetes com cânticos alentejanos, sendo, por isso, entre sussurros e cochichos de velhos e velhas reaccionários (ou simplesmente ignorantes), o maior comunista das redondezas).

Suponhamos que chovia (porque de todas as memórias que me ocorrem, efectivamente, chovia), e se assim fosse, era sabido que os sacos de plástico seriam cortados ao meio e cada um o enfiava na cabeça, a servir de capa. Ríamo-nos todos do meu tio, porque ele só cobria a cabeça, enquanto nós ficávamos protegidos até meio da perna, mais ou menos. Eventualmente, chegávamos à mata de pinheiros, carvalhos e muitos penedos cobertos de musgo. Corríamos a escolher o maior e começávamos a despi-los, lentamente, de forma a que as largas camadas saíssem o mais amplas e homogéneas possível. A chuva caía e enrugava-nos os dedos miúdos, mas o nosso entusiasmo não diminuía, por causa disso.

As camadas de musgo verde e pesado sobrepunham-se, primeiro nos recipientes mais largos, que o tio Zé carregaria, ficando os torrões mais desfeitos para os nossos recipientes, que eram muito mais pequenos e desinteressantes. No regresso a casa, todos conseguíamos antecipar a qualidade das planícies e montanhas que aquela colheita de musgo iria proporcionar ao presépio desse ano. E ninguém tinha dúvidas que esse seria o melhor de sempre!

Há dias, passava ao largo de um mercado em Braga e reparei numa vendedeira, sentada atrás de uns pequenos recipientes cheios de... uma coisa verde. Como conduzia, perguntei à pessoa que ia ao meu lado que me confirmasse, se aquilo era musgo. O tom inexpressivo com que ela disse: “sim, é”, levou-me a camuflar o meu espanto com a normalidade do diálogo: “ E como o vendem?”; e ela: “ ao quilo”. E eu, que me lembrei do meu tio comunista e do cheiro da terra que o musgo levanta, e da pedra nua que a chuva tornaria mais limpa, e do cheiro dos pinheiros e de como escorregávamos na garvalha (que fora do Minho é caruma, mas com outro cheiro), eu que me lembrei que o meu Natal não é meu: é nosso. Eu, que sei que esta pluralidade vem do fundo do tempo (do meu tempo), estiquei o sorriso de incompreensão ao cúmulo da gargalhada e disse, como se tivesse toda a sabedoria do mundo reunida no peito: “mas… não é assim que se colhe o musgo”.

Não adianta de muito descrever o rosto ignorante da minha amiga, porque no meio do seu silêncio estupefacto, percebia-se, que nunca lhe ocorrera, que o musgo, como todas as coisas que nos tornam felizes, também se colhe. Sinto que lhe devo estas memórias de infância, que é onde se reúne toda a sabedoria do mundo ou onde se aprende a colheita da felicidade.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Manhã

Desperto com metáforas nas mãos

Amarfanhadas, enrugadas, envergonhadas

(as metáforas, não as mãos)

Água corrente, espelho partido, sabão

Rotina limpa-retinas

Castigando-me com a visão

A toalha que enxuga o rosto

É a mesma de ontem e do dia anterior

Não secou

Que dia lhe sustentará o interior húmido?

Adiciono-lhe as dúvidas de hoje

Devolvo-a ao varão.

Despejo três adjectivos no saco do pão

Velho duro sensaborão

Levo ao lume a cafeteira com pó para dois

Revela-se um aroma lógico no ar da cozinha

Ocorre-me: Será de ti? É do café, pois

Nós existimos, sem argumentos

Enfias as mãos - metáforas lógicas - no saco do pão

Tiras as dúvidas:

Queimas as palavras

E torras o pão.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Isto parece-me ridículo


Parecem-me ridículos todos “os dias burocráticos” e este “modo funcionário de viver”, parece-me ridículo isto que, ao grande O’Nei,l também parecia. Isto da “vírgula maníaca”, isto do fingir que somos, que estamos integrados, que obedecemos, que cumprimos critérios de qualidade, que alguém lá longe definiu.

Parece-me ridículo isto de amanhar informação por tamanho de letra, por espaço entre linhas, por parágrafos tirados à régua, por títulos às cores. Parecem-me ridículas as formatações, porque ninguém vê, nem faz para além desse desenho quadrado visível a olho nu. Esse olhar desnudado e acrítico que nos vigia (com esmero excessivo e incalculável mesquinhez!) a forma, e ignora o conteúdo. Que gosta de nós vazios, que nos torna peões sem rumo e sem vontade, que nos torna escudos nos seus extensos campos de batalha pela incompetência, pela corrupção e pelo caciquismo.

Parece-me ridículo que esta região da Europa não perceba que, em termos económicos, é apenas isso: uma região na Europa. Um pedaço quase invisível. Parece-me ridículo que nos consigamos indignar e protestar pela defesa dessa região (e da sua irrecuperável glória económica), mas que poucos se batam por aquilo que ainda nos define como país: o nosso património cultural, a nossa língua, os nossos museus vazios, o nosso património arqueológico abandonado, a nossa gastronomia com tiques histéricos no controle de qualidade, os nossos artistas plásticos, os nossos artesãos tristes e abandonados, os nossos pescadores sem rede (mas com tanto mar!), os nossos campos agrícolas abandonados, o nosso turismo a prometer desde a altura em que aqui há sol (e tanto mar!). Parece-me isto ridículo e nem preciso de conhecer o documento do orçamento geral do estado, para saber que os cortes são em tudo isto que nos define, enquanto país, porque alguém insiste nessa importância de sermos uma região económica e insignificante da Europa, em detrimento de sermos um país.

Parece-me ridículo que a nossa noção global de riqueza esteja centrada na força dos nossos credores, que são entidades amorfas, abstractas, virtuais; e que tenhamos perdido a verdadeira noção dos factores geradores de riqueza.

Hoje aconteceu-me acordar com o arrepio desta evidência: eu não estou a crédito, nem sou um pedaço de papel formatado. Por isso, quando uma entidade para a qual presto serviços de formação me enviou devolvido (pela enésima vez) um documento de incontornável importância para a realização das minhas tarefas, “por não concordância da formatação do tamanho de letra”, eu respondi, apenas, assim:

“Isso parece-me ridículo”.

Só gostava de ter enviado essa resposta em correio postal.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Amo Almada!

A notícia da recepção deste prémio que mancha de honra o meu nome (e outras palavras que pedi emprestadas à minha língua, aos meus pais e ao meu país) criaram em mim inquietude que faz com que me interrogue sobre estas questões simples: Quantas vezes poderá um ser humano surpreender-se com o mesmo facto? Quantos momentos de êxtase se atribuirão ao mesmo objecto de alegria? De que matéria fabricarei o recipiente que acondicione esta felicidade?

Tenho, para estas perguntas, respostas esboçadas, mas sei que a vida se encarregará de as transformar noutra coisa.

Sei que é isso, também, que acontece às palavras de quem escreve: a vida, ou melhor, as vidas que as lêem transformá-las-ão noutra coisa. Pessoalmente, acredito que, quando essas palavras conseguem a proeza de provocar surpresas e transformações no interior dessas pessoas, o ofício de quem cria estórias e pinta almas com ortografia e sintaxe é um bom ofício, bem realizado. Foi por estar atracado nesta crença que o meu coração se mostrou por diversas vezes surpreendido e que a minha alegria se expandiu mais do que o normal com a notícia da atribuição do Prémio Literário Cidade de Almada 2010, porque suspeito que o meu texto tenha conseguido esse feito, de outra forma, não seria eu a estar aqui hoje.

Foi precisamente a possibilidade de concorrer sob pseudónimo que me encorajou a fazê-lo, pela primeira vez. O conceito de prémio literário por definição, mas também pelo vício do definido num espaço tão limitado quanto o português, sempre me mereceu um certo cepticismo, em certa medida até um certo desprezo, sentimentos que só atestam a irreverência de quem sabe que o verdadeiro prémio da escrita é a escrita, o acto de nos sentarmos para escrever sobre um universo vazio e de ganharmos a ilusão mágica de criarmos o próprio universo. E que tudo o que transcende isto, tudo o que ultrapassa o momento da escrita pertence já a outros indivíduos, responsáveis também eles por criarem (ainda) outro tanto, através da leitura). A satisfação de saber que nada para além do texto, nada para além da leitura das palavras que escrevi contribuiu para a decisão do júri, colocou-me, em definitivo, em rota de colisão com a responsabilidade da escrita, enquanto ofício, enquanto coisa que se cria com expressão. E embora esta não tenha sido a primeira vez que senti o reconhecimento da minha escrita, foi, certamente, a primeira vez que senti que a responsabilidade sobre a minha escrita começava a ser partilhada.

Agradeço, portanto, aos elementos do júri pelo facto de se terem transformado em cúmplices deste zapping sobre o tempo, sobre a memória, sobre as vontades e desejos individuais, sobre um certo sentir colectivo, sobre o amar e o desamar, neste “zapping sobre as madrugadas idênticas” e de o terem assumido sem filtros externos, sem preconceitos e, sobretudo, sem me darem a impressão de que até para ofício tão idóneo quanto este a que, às vezes, me dedico é necessário um cartão de cliente.

Agradeço à Câmara Municipal de Almada por manter vivo este prémio, sem o desvirtuar há já mais de vinte anos.

Agradeço a todos os seres humanos que estimo muito: os amigos e a família, alguns aqui presentes, mas agradeço também a todos quantos não estimo nem nunca estimei, mas que a vida se encarregou de me colocar no caminho e que eu colhi e continuarei a colher, se não para a vida, para os livros.

Eugénia Brito

sábado, 18 de setembro de 2010

Zapping sobre as madrugadas idênticas (excerto)

Isto pensava Jean, enquanto afundava as mãos velhas no corpo a envelhecer cada vez mais e já não o sentia tanto. Pensava Jean que precisava de mais luz e deslocava-se para sul. Cada vez mais procurava o sul num desnortear constante. E um dia, pensava Jean que vivia no ponto mais a sul da Europa e vivia no ponto mais a sul da Europa, só que não era bem da Europa que se tratava, era a ocidental praia lusitana: só uma praia com o mar a dar na areia. Pensava Jean que lugar seria aquele, aonde chegara, seguindo a luz e se encontrou no meio das trevas. Pensava Jean que até às trevas chega a luz e punha-se a acender archotes nas mãos, que já não se lhe afundavam só no corpo. Pensava Jean que talvez a luz desse lugar fosse demasiada e turvasse a visão das pessoas, e resolveu ficar por ali na esperança de regular essa luz na medida exacta das suas necessidades. Pensava Jean que se um homem só pode provocar cegueira nas gentes, também ele sozinho poderia iluminar algumas almas. Pensava Jean que na areia da praia poderia fazer um jardim e lá plantaria cravos vermelhos, para mais tarde outros colherem, mas muito mais tarde, que a areia não é local apropriado para grandes culturas. Pensava Jean na sua filha e descobria uma família (e aqui Jean pensava em netos, e nascia a minha irmã, e pensava em mais netos e nascia eu). Pensava Jean no tamanho da sua família e faltava-lhe o sul. Pensava Jean que se voltava, de novo, para norte, e voltava-se de novo para norte, mas não caminhava nessa direcção, porque o cansaço o ia sentando na areia dessa praia imensa. Pensava Jean que afundava as mãos velhas num corpo mais velho que as mãos, e faltavam-lhe forças para pensar que vivia, ainda que só pela ilusão das mãos. Pensava Jean que estava cansado e sobre o que o teria cansado assim tanto. E pensava que ficaria por ali a adivinhar o seu cansaço. Pensava Jean que contaria o seu cansaço e, quando eu colhi, finalmente, o primeiro cravo do seu jardim de areia, ele pensou que me contaria o seu cansaço. Pensava Jean que me contava a sua vida. Pensava eu que a ouvia sem distracções e que aprendia a viver melhor.

Pensava Jean em viver a grande metáfora do mundo, em criar a grande metáfora do mundo. E naquele momento em que perdeu Non, percebeu o significado disso. Percebeu que essa metáfora se procura e se vai crescendo, como um balão a que se propulsione algum ar, mas nunca o ar todo, para que não rebente o balão, para que o ar não se esgote. Percebeu que em 100 anos que vivesse continuaria à procura dessa metáfora. Que a vida lhe imporia que continuasse essa busca na certeza de que a grande metáfora do mundo é aquilo que a realidade dá a viver e se põe a transformar. A grande metáfora da vida é a realidade e a realidade é só o momento em que sentimos. Nenhum dos outros momentos existem, são apenas esboços, traços difusos daquilo que queríamos estar a viver, daquilo que queríamos estar a sentir. Pensava Jean que sentia e que o pensamento era a metáfora desse sentir. E enquanto pensava Jean, passava o tempo em que tudo sentia, em que tudo ia sendo real.

domingo, 5 de setembro de 2010

As famílias gritam

Todas as famílias gritam, mas há umas que gritam mais do que outras.
Eu estava convencida que nenhuma família fazia mais banzé do que a minha, quando chegava agosto e as reuniões, a pretexto de sardinhada, se sucediam umas às outras numa inebriante dança de sorrisos e abraços à chegada e à partida. Entre essa dança bem definida, outras modas se coreografavam, normalmente ao ritmo de vozes esganiçadas, irritadiças, impacientes e abertas, demasiadamente abertas para o meu gosto.
Eu estava convencida que ninguém se irritava mais do que eu, quando todos falavam em simultâneo e eu, que abominava isso, falava também em tom demasiado elevado, aproveitando para atropelar pessoas (do meu sangue ou não) com todo o destempero que conseguisse reunir na voz. Ano após ano, encontro após encontro, eu prometia a mim mesma em silêncio, que não voltaria a compactuar com esse tipo de comportamento. E este Verão não foi diferente: lá estive em lugar conhecido a prometer a mim mesma não voltar a falar tão alto, não voltar a indignar-me com opiniões, gostos e valores que ficam de outro lado daquilo que defendo, gosto e pratico. Para o ano cá estará, certamente, a minha alma veraneante com os mesmos sentimentos, as mesmas sensações, as mesmas irritações e (oxalá!) a mesma família.
Falo do Verão porque, como somos mais, estamos de férias e há poucas inquietações, a profusão de conversas é acentuadamente maior e normalmente mais desprendida; mas isto é sentimento que me acompanha o ano todo, a vida toda. Isto, pensava eu, só se passava na minha família, facto que me causava um certo incómodo.
Estes dias, de repente, dei por mim em aturada observação ao comportamento de outras famílias e foi com alguma surpresa que senti aquela vergonha que normalmente se sente por coisas que não nos dizem diretamente respeito, e aí percebi que o incómodo que eu sentia, era na verdade essa vergonha que, ao observar comportamentos em tudo idênticos aos da minha família, tão espontaneamente se definiu no meu corpo.
Foi fácil concluir que, no seio familiar, grande parte das conversas ocorrem entre gritos e atropelos e que é precisamente isso que se pretende: que ninguém oiça ninguém, e todos reclamem o seu momento para falar, opinar, barafustar, para fazer pedidos ou revelações, mas mantendo sempre de reserva essa fé de que ninguém nos esteja verdadeiramente a ouvir…
Quando queremos, de facto, ouvir e ser ouvidos temos amigos a quem recorrer e podemos aí fazer uso das regras de boa educação que nos foram incutidas algures na infância. De forma proverbial sabemos bem que quando um burro fala o outro baixa as orelhas e sabemos o significado disto, porque no-lo ensinaram algumas dessas pessoas que aos domingos de agosto, ao juntarem-se em churrascos e sardinhadas parecem uma cena violenta de um filme (uma daquelas em que fechamos os olhos, encolhemos o corpo e pomos as mãos nos ouvidos). Às vezes, é isto mesmo que me apetece fazer e, em muitas imagens que guardo só para mim, é isso mesmo que faço. Há de ser isso que outros fazem também.
Não sei.
Sei que este espaço, onde me acolhem sempre, tem a capacidade bruta de me receber em vísceras como nenhum outro. Talvez seja por isso que, ano após ano, também eu seguro as suas. Talvez seja por isso que não me envergonho de continuar a fazer promessas que nunca cumprirei e para a próxima cá estarei com tudo de bom e mau que o meu interior conseguir expelir. Sei que todos farão o mesmo. E essa estranha contradição do amor que tanto compreende como ofende continuará a fazer muito por estas mãos paradoxais.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Marco Fortes


O senhor que leva este nome é forte. Olhando-se para ele percebe-se bem o que quero dizer. Enquanto escrevo qualquer coisa (que ainda não sei o que será) não o vejo, mas oiço a sua voz calma, delicada, transparente e lúcida, escolhendo cuidadosamente as palavras, não venha o acaso pô-lo a proferir enormidades, decalcando-lhe ainda mais a imagem de incauto, inconsequente e preguiçoso, que inesperadamente o celebrizou. Entenda-se por celebridade, qualquer figura que, em contexto de silly season, consegue a proeza de abrir os noticiários nacionais por uma ou duas ocasiões e mais de 5000 visualizações da sua imagem no youtube.
Por esta altura, já há quem saiba de quem falo, mas seguramente, a grande maioria não associa o nome do atleta olímpico de lançamento do peso, que de manhã só está bem é “na caminha” ao nome que dá o título a este texto. Outros tantos, pensarão que, depois de tão longa ausência por este blogue, eu própria terei andado a tratar de estabelecer mínimos para uma qualquer categoria olímpica ainda inexistente. Mas não. Desenganem-se!
Uma das razões por que tenho estado caladinha é porque a silly season consegue pôr qualquer um a dizer e a fazer os maiores disparates, e eu, que já tenho uma natural propensão para o fazer, resolvi acautelar-me, ficar na retaguarda e passar ao lado dos três grandes acontecimentos deste Verão: a escarradela de Cristiano Ronaldo, a escorregadela de Carlos Queiroz e a quase dizimação da minha terra, através dos fogos. Aliás, no preciso momento em que escrevo, caem-me faúlhas no cabelo e eu deixo-me estar, até porque o ministro da administração interna já veio assegurar que a época de fogos este ano foi muito melhor do que a dos anos transatos. Eu, por mim, vejo-me tentada a considerá-la explosiva! E a culpa é do Ronaldo, que afinal não explodiu no mundial e arranjou modo e maneira de incendiar o país. Mais coisa, menos coisa, resume-se, então, a isto, o Verão de 2010, com os três elementos essenciais a intercetarem-se com grande naturalidade.
Então, e a escorregadela do Queiroz? – Ah, isso, foi por culpa de um bombeiro, que deixou uma mangueira mal colocada ali como quem vai apagar um fogo no Soajo. Por isso, encaixa tudo no mesmo conceito.
Eu sei que há momentos em que se está bem é caladinha, mas já me ardiam as pontas dos dedos.
Continuem a curtir o Verão na praia, na montanha, nas lagoas do rio vez ou, se for caso disso, na caminha...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ryan Nash was waiting to be a poet


Ryan Nash is waiting at Admiralbrücke
He is waiting now there While I ride his green bicycle around kreuzkölln
Ryan Nash is sitting on a bridge waiting for Paula

Jean Paul Sartre would never wait for Simone sitting on a bridge

He thinks

While a poem grows smoothly underneath his fingers

Ryan Nash is waiting to be a poet

While smiling underneath his subtle poetical grief

Gently lifting a glass to his mouth

Like he knew Yeats would have done

While waiting for the birth of his Drinking Song

And he is still waiting on that bridge

And I’m still riding around on his green bicycle

And that “p” for Paula will soon be the same “p” for poem

Though both “p” and “p” are driven by discovery

Ryan Nash isn’t yet aware of that

One is meant to be found the other is meant to be.

This he knows for sure while waiting to be a poet

While I ride around Berlin sitting on that hard saddle

Merry-go-round with two broken pedals

While Ryan’s own saddle was to be ceased

As he stretches his eyes along the river crossing the park

And

There she was being a poem

And

So he was being a poet.


segunda-feira, 7 de junho de 2010

Estado Geral de Cumplicidade

Sei cá de uma história em que

Um jovem lavava os pés

E encontrava o seu primeiro amor

(Descalço)

Encontrava o seu único amor.

Os sapatos que um dia viu numa cena de um filme

(em que um piano ardia)

Nunca se lhe ajustaram à vista

Nunca se lhe ajustarão aos pés

Esses pés limpos que sempre caminharam

Nus

Ajustados ao chão que pisavam livremente.

Eu, que até uso botas e lhes mudo as solas

E que em criança encomendava sandálias a um sapateiro mentiroso

(o mesmo que, no couro, cosia bolas)

Também trago os pés limpos, rentes ao chão

E sei de cenas de filmes em que ardem pianos.

Parece pouca cumplicidade, mas não

Sou tão cúmplice e responsável com pés limpos

Como com esta luva que me esconde a mão

Onde grita o medo e a opressão

Dos que vivem ali, naquela longa Faixa

Afastando dia-a-dia os escombros que foram casa

Aturando a perfídia de altos fazedores de luvas

Que escondem o sangue das mãos e esmagam Gaza.

Sou cúmplice porque me calo e cúmplice porque falo.

Tenho um certo estado de felicidade

É verdade.

Mas isso não me iliba de cumplicidade.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Eyjafjallajökull nos abençoe

Acordava quando ouvia passos que faziam ranger o soalho e sentia o odor de cevada acabada de fazer. Ninguém chamava o meu nome. Levantava-me como quem já tinha saudades de ver gente, mas esgueirava-me para a casa de banho, a trouxe-mouxe, na esperança de não encontrar nenhum dos adultos, antes do inevitável alívio matinal. Nunca o disse a ninguém, mas aquilo de pedir a bênção, antes de fazer o primeiro chichi, não me caía bem. Não que aquilo representasse o que eles queriam que aquilo representasse, se é que eles percebiam a representação do gesto. Se encontrava o meu avô no corredor, jamais me poderia fazer de impedida: ele articulava-se em estátua e esculpia no rosto as rugas de uma severidade inultrapassável. Eu fingia que o que dizia, quando lhe pedia a bênção, era “bom dia”, esperava que ele me depositasse a mão pesada na cabeça e no seu lacónico “Deus te abençoe” (nunca o disse a ninguém!) sentia o dia romper.

A minha educação está cheia de silêncios transformados e entusiasmos abafados. Sempre ouvi mais, muito mais, do que falei. Ainda hoje vivo assim: num indecifrável limbo de tolerância, paciência e silêncio.

Sei que ninguém mo proporá, mas se me fosse dado o desafio de me apartar da minha formação religiosa católica profunda, tenho a certeza que aquilo que sou hoje ficaria irremediavelmente fragilizado. À cabeça dessa fragilidade, não tenho dúvidas em colocar o sem número de exercícios diários que me consumiam, mas também construíam a paciência. A saber: Acordar cedo para ir para a escola, ou acordar cedo para ir para o campo, ou acordar cedo para ir à missa, ou acordar cedo para ir à catequese, ou acordar cedo para ir levar o leite ao posto do leite, ou acordar cedo para ordenhar as vacas, ou acordar cedo ao sabor de hóstias bafientas, ou acordar cedo porque isso era uma coisa normal de se fazer e não havia nada que interessasse que me permitisse ficar na cama, a não ser a vontade ou o cansaço, ou esse facto peripatético de me fazer criança. As alvoradas eram obrigatórias e nunca me agradavam: “paciência!”, diziam eles, “tem que ser”.

Ora, era essencialmente neste ponto que a paciência se esgotava e era aí que eu tinha um dos meus momentos, em que me ensinaram as dialécticas Obediência/Desobediência; Medo/Atrevimento e Culpa/Pecado, tudo pilares maiores da formação católica, e grosso modo exemplos soberbos de toda uma gigantesca lógica de hipocrisia, onde assenta, na verdade, a lógica das religiões, e por arrastamento grande parte da lógica e dos valores sociais, que vão imperando um pouco em todas as culturas. Felizmente, consegui, a muito custo, transformar esses conceitos, reciclando-os em ideias sustentáveis e vivas: Ouvir com rebeldia; Respeitar com ideias próprias; Tolerar integrando.

Tenho dificuldades em explicar por que não abomino toda a minha formação católica, tamanha é a sua falta de coerência. Mas a verdade é que apesar de me terem impingido insistentemente o conceito de culpa, melhor do que qualquer outro, não me sinto culpada, nem com poder de culpar. E sinto-me ainda mais impotente para o fazer, quando olho para a actualidade e verifico a enorme agitação social que vive o nosso país, em torno desta lista de acontecimentos: o Benfica ganhou um campeonato de futebol e o papa está de visita oficial ao nosso país; O Benfica é campeão e o papa anda de papa-móvel. O Benfica visitou o papa e o papa escreveu uma frase num livro. O Benfica quer ser campeão para o ano e o papa vai a Fátima à manha (no dizer do próprio); Os adeptos do Benfica inundaram o Marquês e os fervorosos seguidores do papa são também adeptos do Benfica e inundaram a Praça do Comércio; Jesus guiou o Benfica à vitória e o papa tem um motorista que o guia no papa-móvel, apesar disso, o papa lidera o campeonato de feriados excepcionais e leva um ponto de avanço sobre o Benfica.

Mesmo que quisesse (e soubesse) falar de finanças ou de economia e educação ninguém me iria prestar atenção. Por isso, a listagem de acontecimentos relevantes para o país esgota-se aqui. E não me censurem, que eu bem sei que há por aí muito boa gente dita laica e ateia a aprender a rezar para que o eyjafjallajökull nos abençoe, isolando-nos com o seu desassossego e nos mantenha esta chama ardente na fé ou no Benfica. Tanto faz.