As pessoas que escrevem, escrevem sempre. Até
quando lhes parece que o sangue não lhes corre nas veias, agem e sentem como
répteis, a temperatura do corpo adapta-se à temperatura ambiente. O escritor
foi buscar isso aos répteis: adapta-se às circunstâncias, porque sabe que o
valor das palavras que conhece hoje é diferente amanhã, e a sua busca de
entendimento do mundo está nas palavras. É preciso procurá-las.
A morte não é
a pior coisa que nos acontece. As pessoas sabem muito bem que é assim.
Há nove meses,
andava eu já mais esquecida do medo, por causa da besta negra que invadira a
Luísa, e perco o Luís, aquele que me dava a maior garantia de que a morte
estava longe e não vinha já. Vejo pessoas a escreverem logo a seguir ou durante
as suas perdas e isso impressiona-me. Eu também o fiz, mas em certa medida
obriguei-me a fazê-lo. A minha querida irmã, com outro sangue a correr-lhe nas
veias e a uma nova fauna intersticial, também se pôs logo a trabalhar, pôs-se a andar na rua sem sentir as pernas
e elas a levarem-na por caminhos e a passarem pelas pessoas, sem quebrarem, sem
a deixarem cair. Os amigos do Luís soltaram as palavras que tinham dentro e
isso também os foi mantendo de pé. Mostraram-se todos, sem saberem que o vemos
nos rostos deles sempre que os encontramos e que isso nos dói, e que isso nos
lava um pouco por dentro.
Ando há nove meses furiosa com tudo e também
com as palavras (bastante mais com as palavras que, afinal, não chegam para
apaziguar coisa nenhuma). E ontem, no dia da mãe, quando me pus a ler um texto,
que ando a escrever há já mais tempo que a evidência desta coisa muito feia que
nos aconteceu, gostei tão pouco, que pensei: E se fosse mãe, poderia não gostar do meu filho? – Não sei. Talvez
nunca saiba. Amar é uma opção e há muitas mães que optam por não amar. São, aliás, mais as que optam por não amar do que as que admitem não gostar. Talvez a
vida fosse melhor se muitas mães admitissem não gostar dos seus filhos e
seguissem, ainda assim, na sua opção de os amar.
Nove meses é
normalmente um tempo bom, traz-nos memórias fecundas e doces. Nasceu uma
criança (outras também, mas eu quero referir-me a esta), a Paula ficou grávida
(outras mulheres engravidaram, mas eu quero referir-me a esta), o tempo
continuou a gerar vida (e continuou a gerar morte, mas eu quero referir-me à
vida). Ainda assim, estes nove meses foram um tempo mau.
Não gostei do
texto ontem, provavelmente hoje já gosto mais e, até decidir que está acabado,
irei continuar a promover o seu crescimento, conforme considerar justo. Livros
não são filhos! Podemos acabá-los ou não, podemos ignorá-los e esquecê-los, rasgá-los
ou apagá-los e até mostrá-los. Mas livros não são filhos, não senhor! – As
pessoas sabem muito bem que é assim.
A morte não é
a pior coisa que nos acontece – as pessoas sabem muito bem que é assim. – Mas a
mim é. Quem escreve, escreve sempre. – Mas eu não. Eu ainda não aprendi nada
com os répteis, e muito pouco com os peixes.