quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Manhã

Desperto com metáforas nas mãos

Amarfanhadas, enrugadas, envergonhadas

(as metáforas, não as mãos)

Água corrente, espelho partido, sabão

Rotina limpa-retinas

Castigando-me com a visão

A toalha que enxuga o rosto

É a mesma de ontem e do dia anterior

Não secou

Que dia lhe sustentará o interior húmido?

Adiciono-lhe as dúvidas de hoje

Devolvo-a ao varão.

Despejo três adjectivos no saco do pão

Velho duro sensaborão

Levo ao lume a cafeteira com pó para dois

Revela-se um aroma lógico no ar da cozinha

Ocorre-me: Será de ti? É do café, pois

Nós existimos, sem argumentos

Enfias as mãos - metáforas lógicas - no saco do pão

Tiras as dúvidas:

Queimas as palavras

E torras o pão.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Isto parece-me ridículo


Parecem-me ridículos todos “os dias burocráticos” e este “modo funcionário de viver”, parece-me ridículo isto que, ao grande O’Nei,l também parecia. Isto da “vírgula maníaca”, isto do fingir que somos, que estamos integrados, que obedecemos, que cumprimos critérios de qualidade, que alguém lá longe definiu.

Parece-me ridículo isto de amanhar informação por tamanho de letra, por espaço entre linhas, por parágrafos tirados à régua, por títulos às cores. Parecem-me ridículas as formatações, porque ninguém vê, nem faz para além desse desenho quadrado visível a olho nu. Esse olhar desnudado e acrítico que nos vigia (com esmero excessivo e incalculável mesquinhez!) a forma, e ignora o conteúdo. Que gosta de nós vazios, que nos torna peões sem rumo e sem vontade, que nos torna escudos nos seus extensos campos de batalha pela incompetência, pela corrupção e pelo caciquismo.

Parece-me ridículo que esta região da Europa não perceba que, em termos económicos, é apenas isso: uma região na Europa. Um pedaço quase invisível. Parece-me ridículo que nos consigamos indignar e protestar pela defesa dessa região (e da sua irrecuperável glória económica), mas que poucos se batam por aquilo que ainda nos define como país: o nosso património cultural, a nossa língua, os nossos museus vazios, o nosso património arqueológico abandonado, a nossa gastronomia com tiques histéricos no controle de qualidade, os nossos artistas plásticos, os nossos artesãos tristes e abandonados, os nossos pescadores sem rede (mas com tanto mar!), os nossos campos agrícolas abandonados, o nosso turismo a prometer desde a altura em que aqui há sol (e tanto mar!). Parece-me isto ridículo e nem preciso de conhecer o documento do orçamento geral do estado, para saber que os cortes são em tudo isto que nos define, enquanto país, porque alguém insiste nessa importância de sermos uma região económica e insignificante da Europa, em detrimento de sermos um país.

Parece-me ridículo que a nossa noção global de riqueza esteja centrada na força dos nossos credores, que são entidades amorfas, abstractas, virtuais; e que tenhamos perdido a verdadeira noção dos factores geradores de riqueza.

Hoje aconteceu-me acordar com o arrepio desta evidência: eu não estou a crédito, nem sou um pedaço de papel formatado. Por isso, quando uma entidade para a qual presto serviços de formação me enviou devolvido (pela enésima vez) um documento de incontornável importância para a realização das minhas tarefas, “por não concordância da formatação do tamanho de letra”, eu respondi, apenas, assim:

“Isso parece-me ridículo”.

Só gostava de ter enviado essa resposta em correio postal.