A notícia da recepção deste prémio que mancha de honra o meu nome (e outras palavras que pedi emprestadas à minha língua, aos meus pais e ao meu país) criaram em mim inquietude que faz com que me interrogue sobre estas questões simples: Quantas vezes poderá um ser humano surpreender-se com o mesmo facto? Quantos momentos de êxtase se atribuirão ao mesmo objecto de alegria? De que matéria fabricarei o recipiente que acondicione esta felicidade?
Tenho, para estas perguntas, respostas esboçadas, mas sei que a vida se encarregará de as transformar noutra coisa.
Sei que é isso, também, que acontece às palavras de quem escreve: a vida, ou melhor, as vidas que as lêem transformá-las-ão noutra coisa. Pessoalmente, acredito que, quando essas palavras conseguem a proeza de provocar surpresas e transformações no interior dessas pessoas, o ofício de quem cria estórias e pinta almas com ortografia e sintaxe é um bom ofício, bem realizado. Foi por estar atracado nesta crença que o meu coração se mostrou por diversas vezes surpreendido e que a minha alegria se expandiu mais do que o normal com a notícia da atribuição do Prémio Literário Cidade de Almada 2010, porque suspeito que o meu texto tenha conseguido esse feito, de outra forma, não seria eu a estar aqui hoje.
Foi precisamente a possibilidade de concorrer sob pseudónimo que me encorajou a fazê-lo, pela primeira vez. O conceito de prémio literário por definição, mas também pelo vício do definido num espaço tão limitado quanto o português, sempre me mereceu um certo cepticismo, em certa medida até um certo desprezo, sentimentos que só atestam a irreverência de quem sabe que o verdadeiro prémio da escrita é a escrita, o acto de nos sentarmos para escrever sobre um universo vazio e de ganharmos a ilusão mágica de criarmos o próprio universo. E que tudo o que transcende isto, tudo o que ultrapassa o momento da escrita pertence já a outros indivíduos, responsáveis também eles por criarem (ainda) outro tanto, através da leitura). A satisfação de saber que nada para além do texto, nada para além da leitura das palavras que escrevi contribuiu para a decisão do júri, colocou-me, em definitivo, em rota de colisão com a responsabilidade da escrita, enquanto ofício, enquanto coisa que se cria com expressão. E embora esta não tenha sido a primeira vez que senti o reconhecimento da minha escrita, foi, certamente, a primeira vez que senti que a responsabilidade sobre a minha escrita começava a ser partilhada.
Agradeço, portanto, aos elementos do júri pelo facto de se terem transformado em cúmplices deste zapping sobre o tempo, sobre a memória, sobre as vontades e desejos individuais, sobre um certo sentir colectivo, sobre o amar e o desamar, neste “zapping sobre as madrugadas idênticas” e de o terem assumido sem filtros externos, sem preconceitos e, sobretudo, sem me darem a impressão de que até para ofício tão idóneo quanto este a que, às vezes, me dedico é necessário um cartão de cliente.
Agradeço à Câmara Municipal de Almada por manter vivo este prémio, sem o desvirtuar há já mais de vinte anos.
Agradeço a todos os seres humanos que estimo muito: os amigos e a família, alguns aqui presentes, mas agradeço também a todos quantos não estimo nem nunca estimei, mas que a vida se encarregou de me colocar no caminho e que eu colhi e continuarei a colher, se não para a vida, para os livros.
Eugénia Brito