sábado, 18 de setembro de 2010

Zapping sobre as madrugadas idênticas (excerto)

Isto pensava Jean, enquanto afundava as mãos velhas no corpo a envelhecer cada vez mais e já não o sentia tanto. Pensava Jean que precisava de mais luz e deslocava-se para sul. Cada vez mais procurava o sul num desnortear constante. E um dia, pensava Jean que vivia no ponto mais a sul da Europa e vivia no ponto mais a sul da Europa, só que não era bem da Europa que se tratava, era a ocidental praia lusitana: só uma praia com o mar a dar na areia. Pensava Jean que lugar seria aquele, aonde chegara, seguindo a luz e se encontrou no meio das trevas. Pensava Jean que até às trevas chega a luz e punha-se a acender archotes nas mãos, que já não se lhe afundavam só no corpo. Pensava Jean que talvez a luz desse lugar fosse demasiada e turvasse a visão das pessoas, e resolveu ficar por ali na esperança de regular essa luz na medida exacta das suas necessidades. Pensava Jean que se um homem só pode provocar cegueira nas gentes, também ele sozinho poderia iluminar algumas almas. Pensava Jean que na areia da praia poderia fazer um jardim e lá plantaria cravos vermelhos, para mais tarde outros colherem, mas muito mais tarde, que a areia não é local apropriado para grandes culturas. Pensava Jean na sua filha e descobria uma família (e aqui Jean pensava em netos, e nascia a minha irmã, e pensava em mais netos e nascia eu). Pensava Jean no tamanho da sua família e faltava-lhe o sul. Pensava Jean que se voltava, de novo, para norte, e voltava-se de novo para norte, mas não caminhava nessa direcção, porque o cansaço o ia sentando na areia dessa praia imensa. Pensava Jean que afundava as mãos velhas num corpo mais velho que as mãos, e faltavam-lhe forças para pensar que vivia, ainda que só pela ilusão das mãos. Pensava Jean que estava cansado e sobre o que o teria cansado assim tanto. E pensava que ficaria por ali a adivinhar o seu cansaço. Pensava Jean que contaria o seu cansaço e, quando eu colhi, finalmente, o primeiro cravo do seu jardim de areia, ele pensou que me contaria o seu cansaço. Pensava Jean que me contava a sua vida. Pensava eu que a ouvia sem distracções e que aprendia a viver melhor.

Pensava Jean em viver a grande metáfora do mundo, em criar a grande metáfora do mundo. E naquele momento em que perdeu Non, percebeu o significado disso. Percebeu que essa metáfora se procura e se vai crescendo, como um balão a que se propulsione algum ar, mas nunca o ar todo, para que não rebente o balão, para que o ar não se esgote. Percebeu que em 100 anos que vivesse continuaria à procura dessa metáfora. Que a vida lhe imporia que continuasse essa busca na certeza de que a grande metáfora do mundo é aquilo que a realidade dá a viver e se põe a transformar. A grande metáfora da vida é a realidade e a realidade é só o momento em que sentimos. Nenhum dos outros momentos existem, são apenas esboços, traços difusos daquilo que queríamos estar a viver, daquilo que queríamos estar a sentir. Pensava Jean que sentia e que o pensamento era a metáfora desse sentir. E enquanto pensava Jean, passava o tempo em que tudo sentia, em que tudo ia sendo real.

domingo, 5 de setembro de 2010

As famílias gritam

Todas as famílias gritam, mas há umas que gritam mais do que outras.
Eu estava convencida que nenhuma família fazia mais banzé do que a minha, quando chegava agosto e as reuniões, a pretexto de sardinhada, se sucediam umas às outras numa inebriante dança de sorrisos e abraços à chegada e à partida. Entre essa dança bem definida, outras modas se coreografavam, normalmente ao ritmo de vozes esganiçadas, irritadiças, impacientes e abertas, demasiadamente abertas para o meu gosto.
Eu estava convencida que ninguém se irritava mais do que eu, quando todos falavam em simultâneo e eu, que abominava isso, falava também em tom demasiado elevado, aproveitando para atropelar pessoas (do meu sangue ou não) com todo o destempero que conseguisse reunir na voz. Ano após ano, encontro após encontro, eu prometia a mim mesma em silêncio, que não voltaria a compactuar com esse tipo de comportamento. E este Verão não foi diferente: lá estive em lugar conhecido a prometer a mim mesma não voltar a falar tão alto, não voltar a indignar-me com opiniões, gostos e valores que ficam de outro lado daquilo que defendo, gosto e pratico. Para o ano cá estará, certamente, a minha alma veraneante com os mesmos sentimentos, as mesmas sensações, as mesmas irritações e (oxalá!) a mesma família.
Falo do Verão porque, como somos mais, estamos de férias e há poucas inquietações, a profusão de conversas é acentuadamente maior e normalmente mais desprendida; mas isto é sentimento que me acompanha o ano todo, a vida toda. Isto, pensava eu, só se passava na minha família, facto que me causava um certo incómodo.
Estes dias, de repente, dei por mim em aturada observação ao comportamento de outras famílias e foi com alguma surpresa que senti aquela vergonha que normalmente se sente por coisas que não nos dizem diretamente respeito, e aí percebi que o incómodo que eu sentia, era na verdade essa vergonha que, ao observar comportamentos em tudo idênticos aos da minha família, tão espontaneamente se definiu no meu corpo.
Foi fácil concluir que, no seio familiar, grande parte das conversas ocorrem entre gritos e atropelos e que é precisamente isso que se pretende: que ninguém oiça ninguém, e todos reclamem o seu momento para falar, opinar, barafustar, para fazer pedidos ou revelações, mas mantendo sempre de reserva essa fé de que ninguém nos esteja verdadeiramente a ouvir…
Quando queremos, de facto, ouvir e ser ouvidos temos amigos a quem recorrer e podemos aí fazer uso das regras de boa educação que nos foram incutidas algures na infância. De forma proverbial sabemos bem que quando um burro fala o outro baixa as orelhas e sabemos o significado disto, porque no-lo ensinaram algumas dessas pessoas que aos domingos de agosto, ao juntarem-se em churrascos e sardinhadas parecem uma cena violenta de um filme (uma daquelas em que fechamos os olhos, encolhemos o corpo e pomos as mãos nos ouvidos). Às vezes, é isto mesmo que me apetece fazer e, em muitas imagens que guardo só para mim, é isso mesmo que faço. Há de ser isso que outros fazem também.
Não sei.
Sei que este espaço, onde me acolhem sempre, tem a capacidade bruta de me receber em vísceras como nenhum outro. Talvez seja por isso que, ano após ano, também eu seguro as suas. Talvez seja por isso que não me envergonho de continuar a fazer promessas que nunca cumprirei e para a próxima cá estarei com tudo de bom e mau que o meu interior conseguir expelir. Sei que todos farão o mesmo. E essa estranha contradição do amor que tanto compreende como ofende continuará a fazer muito por estas mãos paradoxais.