quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Feliz aniversário, Vítor!


Faz hoje 40 anos.

É o que me dizem. Sei que não se trata de um boato, porque quem mo diz é a minha mãe, e entre nós não há espaço para rumores: tudo é directo como a descendência.

Há 40 anos (contou-me ainda há pouco a minha mãe) a eira estava tão cheia de milho como ela estava cheia de vida. A eira e o ventre de minha mãe tinham a missão de se esvaziar porque estava marcado nas nuvens que, a seguir, choveria. E a seguir, choveu.

São três acontecimentos desse dia 29 de Outubro de 1969 que estão bem presentes na memória da minha mãe (quando ela os enumera eu vejo a sucessão de imagens, como no cinema, e penso, com agravo, que não consigo ordenar o meu dia de ontem): o canastro encheu-se de espigas secas, a chuva caiu, como em tantos outros dias de Outono, e o meu irmão nasceu.

Há 40 anos eu sabia tanto como aquilo que se sabia de mim: nada.

Um ano depois, acendeu-se uma vela por cima de um bolo de laranja, o meu irmão de um ano soprou-lhe, empurrado pela minha irmã de quase dois anos.

(Na altura ser irmão e irmã era querer ter o mesmo espaço).

Não sei se havia espigas na eira, nem se choveu nesse dia, mas no ventre de minha mãe havia a esperança de outro irmão para os meus dois irmãos.

Há 39 anos eu esperava tanto como aquilo que se esperava de mim:nada.

Dois anos depois, suponho eu que, se entre a troca de fraldas, as colheradas de papa levadas a bocas alternadas dos três irmãos, a minha mãe teve tempo para cozinhar um bolo de laranja, os dois rapazes devem ter soprado às velas do bolo a uma só vez, vigiados de trás pela mana mais velha. Consigo imaginar que, neste quadro que câmara alguma registou, estes irmãos já percebiam que se tinham uns aos outros e que o mesmo espaço chegava para todos.

Há 38 anos eu tinha tanto como aquilo que se tinha de mim: nada.

Três anos depois (continuo a supor), a minha mãe acordou e olhou-se ao espelho. Estava magra e cansada, mas sorria, como a vida lhe ensinou que se fazia. Sorria como nunca desaprendeu. Sorria como ficou registado numa foto a preto e branco tirada uns tempos mais tarde. Sorria como a vejo fazer todos os dias (mesmo nos dias em que me esqueço de olhar para ela).

Nesse dia, ela e o meu pai saíram para o campo. (Devia ser mesmo muito cedo! Ainda as crianças não se ouviam).

Há 37 anos eu sentia tanto quanto o que se sentia por mim: nada.

Quatro anos mais tarde, a minha mãe era finalmente minha, o meu pai era finalmente meu, a minha irmã mais velha era a minha irmã mais velha, o meu irmão do meio era o meu irmão do meio e o meu irmão mais velho, olhava para mim entre quatro velas mal amanhadas em cima do bolo de laranja que a minha avó tinha preparado, minutos antes de me puxar para a luz.

Há 36 anos eu já era alguém, mas não tinha nome.

Por muito que tente meter o nariz nesse momento (que a minha mãe me descreve a rebentar de orgulho) das espigas que recolhia da eira para o canastro, no dia em que o meu irmão nasceu sem enfermeira, sem parteira e quase sem esforço, é-me impossível senti-lo. Mas deste outro dia em que eu já era alguém e todos pensavam que eu ainda não tinha nome, sei que, ao soprar as velas do bolo, sem ninguém o notar, o meu irmão mais velho fechou os olhos, encolheu os ombros e muito baixinho suspirou isto: raio de coincidência! Três dias mais tarde, mudaram-me o nome.

Faz hoje 40 anos não se sabia que esta coincidência se daria. Faz hoje 40 anos ninguém na minha família sabia o que isso era.

Foi exactamente há 36 anos que eu comecei a coincidir com a vida, onde muita gente já estava. Por uma feliz coincidência (e algum engenho dos nossos pais) também já cá estava o Vítor.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

o lume por companhia



O lume por companhia.

Ao lado, numa banca de cozinha, a caneca de leite quente espera que ela lhe deposite o pão velho de dois dias. A lareira a sussurrar rancores, que espalha pela cozinha toda. O pão cai e levanta-se molhado, pesado, para dentro e para fora da caneca de barro esmurrada. O lume por companhia, vigia isto à distância. E ela ganha a ilusão do pensamento. Ganha a ilusão da partilha.

De pé, encostada à banca, vai processando esse ritual simples de despedir a rotina da fome. A labareda a prometer que dura. Antes do Outono tudo é silêncio. É o que ela pensa, enquanto, come o seu pão ensopado de leite quente, e conversa com o lume, esse interlocutor de conversas crípticas e de voz apaziguadora. Quem a visse assim, neste cenário que recebe o frio, julgá-la-ia triste. Mas não. Sente-se vitoriosa e quente. Sente-se parte da labareda: sabe que as histórias que lhe conta em segredo a alimentam tanto como as achas de videira rachada e seca, que a poda lhe ofereceu.

Um telemóvel impacienta-se dentro da bolsa, em cima de mesa. O pão ensopado de leite pára, por segundos, a meio caminho da caneca e da boca. O telemóvel não se cala. O pão chega à boca, como nas vezes anteriores, sem dúvidas de que vai perder peso.

O telefone cala-se.

É sexta-feira, acabaram-se vários dias nos últimos minutos. Não tem planos para amanhã. Nem para hoje. Nunca faz planos. Aproxima-se da lareira, oferece-lhe mais uma acha. Senta-se, sabendo que numa cidade, não muito longe dali, há gente impaciente numa fila de trânsito. Gente que faz planos todos os dias.

Adormece com o abanico na mão e o lume por companhia.


Errata: onde antes se leu "axa", deve ler-se "acha", porque o Camilo acha e eu estou de acordo. A ortografia é um feixe de acordos, afinal. Fica o erro assumido. Para a próxima, escrevo "canhota", como me ensinaram a dizer:)